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África dos sonhos
PROJETO CONTROVERSO DO ECONOMISTA JEFFREY SACHS TENTA REVERTER SITUAÇÃO DE PENÚRIA DE ALDEIAS DO CONTINENTE
SAM RICH
Sauri deve ser a aldeia
mais afortunada da
África. O milho cresce
mais, a água é mais
limpa, e os estudantes
da escola local recebem alimentação melhor do que em
quase qualquer outra parte da
África ao sul do Saara.
Poucos anos atrás, Sauri era
só mais uma aldeia queniana
para a qual pobreza, fome e
doença eram fatos cotidianos.
Agora se tornou sede de uma
experiência que fez dela o protótipo para a "aldeia do milênio". É uma idéia simples: a cada ano, por um prazo de cinco
anos, investir um total per capita de cerca de US$ 100 nessa
aldeia de 5.000 habitantes, para descobrir o que acontece.
O projeto Aldeias do Milênio
foi concebido pelo economista
Jeffrey Sachs, principal arquiteto do projeto de transição da
economia estatizada para a
economia de mercado na Polônia e na Rússia.
Os críticos e os defensores de
seu trabalho discordam quanto
ao sucesso dessas empreitadas,
muitas vezes descritas sob o rótulo "terapia de choque", mas
seu papel na reforma econômica radical de ambos os países o
arremessou à fama.
Agora, tem uma nova missão:
pôr fim à pobreza na África.
Conta-gotas
Os africanos vêm recebendo
assistência em conta-gotas há
décadas, alega Sachs em "O Fim
da Pobreza" [Companhia das
Letras], mas jamais em volume
suficiente para que a ajuda faça
diferença.
O dinheiro que chega a eles
termina desperdiçado em pagamentos a consultores que recebem honorários altos demais
ou é usado para custear assistência humanitária e alimentar, o que não ajuda a erradicar
a pobreza.
O africano médio, afirma
Sachs, está preso na "armadilha
da pobreza". Ele cultiva uma
pequena porção de terras para
sustentar a família e simplesmente não dispõe dos ativos
necessários para gerar lucros.
À medida que a população
cresce, as pessoas passam a dispor de menos e menos terra, e
isso as torna ainda mais pobres.
Quando o agricultor precisa
pagar a escola dos filhos ou
comprar remédios, se vê forçado a vender as poucas propriedades de que dispõe ou a se endividar. Mas, se dispusesse de
algum capital, poderia investir
em sua fazenda, cultivar o bastante para obter um excedente,
vender o produto e, assim, começar a ganhar dinheiro.
Não é o diagnóstico que
Sachs apresenta quanto aos
problemas da África que torna
suas teorias controversas, mas
a solução que propõe, que poderia ser definida como um
"choque de assistência" -grandes e rápidas injeções de capital
em áreas pobres.
Ao longo de cinco anos, a aldeia de Sauri receberá, sozinha,
US$ 2,75 milhões em investimentos e montantes semelhantes serão investidos nas 11
outras Aldeias do Milênio que
estão sendo estabelecidas em
dez países africanos.
Visita
Em 2006, visitei Sauri, a aldeia da qual tanto parece depender. Eu havia acabado de ler
o livro de Sachs e admito que
estava cético quanto à sensatez
de investimentos tão elevados
em uma única aldeia.
No dia seguinte à minha chegada haveria uma excursão de
visitantes partindo na jornada
de 50 quilômetros até Sauri.
Nossa primeira parada foi na
clínica de saúde, que oferecia
lembretes severos sobre a profundidade dos problemas de
Sauri e sobre os benefícios que
o dinheiro pode propiciar.
A enfermeira de plantão nos
informou que, no início do projeto, todos os domicílios receberam redes de proteção contra mosquitos, após testes aleatórios com os moradores revelarem que mais de 40% deles
sofriam de malária. Agora, o índice caiu para menos de 20%.
A malária está sendo tratada
gratuitamente com Coaterm,
um remédio caro e indisponível
na maior parte do Quênia.
Minutos mais tarde, chegamos ao pátio verdejante da escola primária. Os edifícios de tijolos vermelhos não estão equipados com portas e janelas e
oferecem salas de aula para
mais de 600 crianças. Uma das
construções não tem teto.
O professor demonstrava entusiasmo com o inovador programa de alimentação adotado
na escola. Cerca de 10% dos
produtos agrícolas colhidos na
aldeia são destinados às refeições escolares das crianças, disse. Além disso, o projeto compra frutas, carne e peixe para
prover os estudantes de vitaminas e proteínas.
Voltamos ao Toyota e partimos para mais uma visita, a um
novo edifício de tijolos mal acabado, com piso de terra batida.
Lá, os cerca de 12 integrantes
do comitê agrícola da aldeia tomam decisões cruciais para o
sucesso de todo o projeto. As
safras melhoradas podem ajudar a manter o programa de alimentação escolar e a elevar a
renda dos agricultores.
O sucesso na agricultura deve permitir que a aldeia mantenha seu crescimento depois
que o projeto de cinco anos for
encerrado, em 2009.
A maior contribuição do projeto à agricultura foi a aquisição
de fertilizantes para elevar a
produção de milho. O milho,
cultivado na região há mais
tempo do que é possível lembrar, é a principal safra de subsistência ali, como em outras
partes da África.
Os fertilizantes sintéticos são
dispendiosos demais para os
agricultores médios, mas em
Sauri o projeto investe US$ 50
mil ao ano neles.
Os professores partiram, mas
eu decidi ficar. Era evidente
que o Projeto Aldeias do Milênio havia conseguido grandes
realizações, mas eu não sentia
que tivesse contemplado o quadro completo.
Cruzei a estrada e fui à aldeia
conversar com um dos orientandos de Sachs, um pesquisador da Universidade Columbia.
Havíamos nos conhecido algumas horas antes, quando ele
se ofereceu para me apresentar
a um morador de Sauri, Ben
Bunde, na casa deste.
Quando perguntei a Bunde
de que maneira a aldeia mudara com o projeto, ele inclinou o
corpo para trás, riu e disse que
"agora as meninas têm cortes
de cabelo melhores". O número
de salões de cabeleireiros aumentou, ele afirmou, entusiástico, e todas as meninas estão
fazendo tranças. Pela primeira
vez, as pessoas estão vendendo
batatas fritas à beira da estrada.
Bunde também diz que a preponderância dos clãs fomenta o
nepotismo e outras formas de
favorecimento indevido.
Segundo ele, os moradores
não foram suficientemente instruídos sobre o projeto.
Depois de receberem fertilizantes e redes contra mosquitos gratuitamente, alguns dos
aldeões os venderam a moradores de comunidades vizinhas já
no dia seguinte e começaram a
conspirar para conseguir mais
fertilizantes e mais redes contra mosquitos.
"Ficamos dependentes"
Em última análise, questiona
se os especialistas estrangeiros
realmente compreendem os
problemas de Sauri. Embora a
vida tenha melhorado nos anos
desde que a experiência do projeto foi iniciada, Bunde especula de maneira temerosa sobre o
que acontecerá quando for encerrado, "porque nos tornamos
totalmente dependentes".
Dois dias depois, me encontrei com um dos dirigentes do
projeto, que pediu para não ter
seu nome divulgado.
Segundo ele, "foram cometidos todos os erros clássicos de
projetos de desenvolvimento...
Se você fornece toneladas de
fertilizante, é previsível que
boa parte do material termine
no mercado aberto. Se você investe milhões [de dólares] em
um lugar pequeno, vai enfrentar problemas".
Cultivar milho anos após ano
desgasta a terra, segundo ele.
Além disso, alegou o funcionário, seu preço não é alto o bastante para fazer dele um produto lucrativo.
Na opinião desse funcionário, o projeto seria mais efetivo
se pressionasse por algumas
mudanças macroeconômicas,
em lugar de concentrar todos
os seus esforços na aldeia.
Por exemplo, os agricultores
do Quênia não compram fertilizante porque o produto custa
três vezes mais no país do que
na Europa, ele afirmou. Caso o
governo queniano reduzisse os
impostos e tarifas de importação sobre os fertilizantes, "muito mais agricultores comprariam o produto".
Sauri realizou mais do que
projetos como esses poderiam,
mas não se transformou ainda
em aldeia-modelo.
África em microcosmo
Em lugar disso, continua a
ser uma África em microcosmo. Todos os problemas fundamentais do continente continuam a existir em Sauri; e, em alguns casos, foram ampliados.
A estrutura política da aldeia
é confusa. Sauri agora tem dois
governos em conflito: os comitês e o governo local existente.
Os comitês do projeto introduziram um novo escalão de
burocratas, e seus recursos superiores solaparam o poder do
governo local.
Além disso, os comitês foram
acusados de trabalhar uns contra os outros, e de corrupção,
lentidão e falta de praticidade.
Os representantes que os integram foram escolhidos por
motivos de origem étnica e posição social, e não por sua habilidade política.
Como em muitas partes da
África, não está claro que decisões foram tomadas pelo governo e que decisões vieram dos
doadores.
Sauri continua a enfrentar os
desafios econômicos do passado. A maioria dos agricultores
produz safras de subsistência e
desgasta a terra. O crescimento
é lento por conta da tributação,
das más estradas e da falta de
eletricidade -que terá de ser
resolvida em nível nacional.
As aldeias estão claramente
desfrutando de melhor saúde
em razão do projeto. Mas, encerrados os cinco anos, o governo do Quênia terá de enfrentar
a difícil escolha entre continuar
a bancar os custos de uma clínica-modelo em Sauri ou reduzir
o orçamento da instituição de
maneira considerável.
E Sauri ainda precisa resolver as divisões que são típicas
do Quênia: entre grupos étnicos, homens e mulheres, jovens
e velhos -legar mulheres como
herança é uma prática que continua em uso. Essas formas de
problemas culturais não podem ser resolvidas por doações;
é preciso que as intervenções
sejam mais sutis.
Isso não equivale a dizer que
Sauri não pode mudar ou que é
desperdício investir na aldeia.
Mas mudanças duradouras
só acontecerão por meio da
educação de crianças e treinamento de adultos, e não pela
distribuição de mercadorias.
Para expressar o dilema de
outro modo, quando alguém dá
a uma pessoa uma rede contra
mosquitos, a pessoa procurará
o doador para obter uma rede
nova quando a antiga se rasgar.
Mas, se lhe for demonstrado
de que maneira a rede contra
mosquitos beneficia sua saúde
e como isso pode resultar em
economia com a compra de remédios, em longo prazo, é provável que a pessoa opte por
comprar a rede sem ajuda.
A íntegra deste texto foi publicada na revista
"Wilson Quarterly".
Tradução de Paulo Migliacci .
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