São Paulo, domingo, 11 de maio de 2003 |
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LEIA TRECHO DO NOVO ROMANCE DO AUTOR GAÚCHO, PREVISTO PARA SAIR ATÉ O FINAL DO ANO E NO QUAL O PROTAGONISTA APERFEIÇOA AS FORMAS DO PRAZER SOLITÁRIO O IRMÃO DE ONÃ
por Moacyr Scliar
O barro não funcionara? Então eu teria de arranjar outra coisa, isso era o que o pênis me dizia, e não deixava de ter razão: ao fim e ao cabo, a matéria vem antes do espírito. E com isso o problema estava criado: com que eu substituiria a vagina de barro? Ingenuidade e repugnância A mão. Claro, eu sabia que a mão era usada para isso, não era tão ingênuo assim. Mas até então não usara minha mão. Tinha medo de fazê-lo. Repugnava-me fazê-lo. Meu medo nascia de certas histórias que ouvira. Dizia-se que um jovem midianita costumava constantemente manipular-se com a mão esquerda. Depois de algum tempo começaram a brotar-lhe cabelos na palma dessa mão. Outro, horrorizado, imediatamente pararia com o hábito nefando e trataria de raspar os cabelos adventícios. Não ele. Armou sua tenda no meio do deserto e ali se refugiou, com suas fantasias e sua mão cabeluda. A cabeleira crescia cada vez mais; ele penteava-a, colocava nela pequenas flores. E, no dorso daquela mão, desenhou, com carvão, dois olhinhos, um nariz e uma boca. A essa criatura chamava de "minha noiva". Uma vez por dia, religiosamente, a noiva baixava até o pênis e vivia com este uma tórrida paixão; voltava de lá trêmula, a cabeleira agora desgrenhada cheia de esperma. A história teve um desfecho sombrio. A outra mão foi ficando cada vez mais enciumada. Um dia agarraram-se, as duas, e na briga a ciumenta quebrou dois dedos da outra. O midianita agarrou uma faca e cortou o polegar e o mínimo dessa mão direita.
Sim, e repugnava-me usar a mão como instrumento de fantasia. Para mim, a mão fora feita para trabalhar: para empunhar o cajado do pastor e o cabo do martelo, para segurar firme a rabiça do arado. A mão podia ser usada também para apertar a mão de um amigo, para acariciar o rosto de uma criança. Agora... mão lá embaixo? Mão fazendo coisas vergonhosas? Contudo decidi experimentar. Quem me exigia era, claro, o pênis, impaciente pênis. Lá foi a mão, friccioná-lo, a princípio lentamente, desajeitadamente, logo mais rápido e com mais habilidade e por fim aquilo, a ejaculação. Provisoriamente, servia. Mas comecei a trabalhar naquilo. Meu objetivo era prescindir da mão. Prescindir dela por completo. Para isso, eu deveria seguir algumas etapas. A primeira delas: reduzir a amplitude dos movimentos. A mão precisava saber que seu espaço no mundo (como o espaço de todas as criaturas) era limitado, que seu tempo no mundo (como o tempo de todas as criaturas) era limitado. Essa etapa deu trabalho -domar a própria mão, conter sua impaciências, seus arroubos, nem sempre é fácil-, mas teve um resultado surpreendente. À medida que diminuía a área de incursão, aumentava a sensibilidade da pele do pênis. Aumentava e, espacialmente falando, concentrava-se. Em algumas semanas estava do tamanho de uma moeda e continuou diminuindo. Por fim era um ponto, um único ponto em que parecia localizar-se o minúsculo pertuito pelo qual era possível penetrar na vasta e escura caverna do desejo. Desejo que, como uma fera, dormia lá no fundo e que, ao ser despertado, mostrava toda sua pujança. Tudo isso, claro, graças ao meu fantástico poder de concentração. Mas eu podia ir mais além. Na etapa seguinte, dediquei-me a eliminar por completo a necessidade do contato físico. Consegui-o: agora, eu chegava ao orgasmo sem tocar o pênis. Claro que a mão não gostou nada disso, relegada que agora estava a um segundo plano. Mas é que um valor mais alto se alevantava, o valor da imaginação. Eu pensava em Tamar, pensava na boca de Tamar, nos seios de Tamar, nas coxas de Tamar e pronto, lá estava o esperma esguichando. Na trajetória que eu me propusera, isso representou um momento crítico. Porque havia uma outra e perturbadora possibilidade, uma possibilidade que eu não evocava sem aflição. Eu podia dispensar Tamar, a figura de Tamar. Podia prescindir de minha imaginação. Eu chegaria ao orgasmo mergulhado no Nada absoluto. Nada na mente, nada no coração e, nem é preciso dizer, nada na mão: nada na mão esquerda, nada na mão direita. Olha, mamãe, sem as mãos. Pobre mamãe, se soubesse o que o filho fazia na caverna. Moacyr Scliar é escritor, autor de, entre outros, de "Os Leopardos de Kafka" (Companhia das Letras). Texto Anterior: A onipresença de Eros Próximo Texto: Conheça o trecho bíblico Índice |
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