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São Paulo, domingo, 11 de maio de 2003

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LEIA TRECHO DO NOVO ROMANCE DO AUTOR GAÚCHO, PREVISTO PARA SAIR ATÉ O FINAL DO ANO E NO QUAL O PROTAGONISTA APERFEIÇOA AS FORMAS DO PRAZER SOLITÁRIO

O IRMÃO DE ONÃ

por Moacyr Scliar

A história de Onã e seus dois irmãos é, até certo ponto, um relato insólito na Bíblia, inserido como está em meio à narrativa sobre a saga de José no Egito. Judá, irmão de José, tem três filhos: Er, Onã e Shelah. O primeiro casa com Tamar, mas, por motivos obscuros, não consegue engravidá-la e é punido por Deus com a morte. De acordo com as leis do levirato, Onã deve assumir o lugar do irmão, para que este tenha descendência, ao menos nominal. Recusa-se a isso, porém, e, em meio ao ato sexual, "derrama seu sêmen sobre a terra", o que era classicamente rotulado como masturbação [daí o "onanismo"", mas que mais provavelmente se trata de coito interrompido. Também ele é punido com a morte. Judá reluta em casar seu terceiro filho com Tamar, temendo por sua sorte. Mas Shelá, ainda adolescente, está apaixonado por ela...

Sozinho eu não conseguia deixar de pensar nela. Refugiado em minha caverna, evocava-lhe o rosto, o corpo; podia sentir os lábios dela nos meus; podia, em imaginação, abraçá-la. E aí -a ereção. Levantava-se, o pênis, abria caminho entre as dobras da túnica e surgia, triunfante, à luz da lamparina para dizer: estou aqui e quero mulher.
Queria mulher, aquele pênis. E onde eu iria arranjar mulher? Não queria saber, não admitiria explicações tipo "meu pai não quer que eu deite com a Tamar". Exigia Tamar, o pênis.
Fiz uma Tamar para ele. Com o barro úmido do fundo da caverna moldei em tamanho natural uma Tamar. Eu era muito bom naquilo, e o barro ajudava -agora entendia por que Deus tinha recorrido a essa matéria-prima para criar o primeiro homem. Ali estava, a minha Tamar (e aquela Tamar era minha, de mais ninguém) a me olhar do chão, a boca entreaberta, os seios nos quais eu tinha caprichado muito empinadinhos. Fiz vagina um pouco estreita; não impediria a penetração, mas oporia ao pênis certa resistência, o que daria a ele, pênis, a sensação de conquista depois de luta. Aquele pênis, como muitos outros, não queria vitórias fáceis; ele preferia a dificuldade da virgindade. Cheguei ao requinte de colocar ali um equivalente do hímen, feito com bexiga seca de cabra. Havia um inconveniente: era fria, aquela Tamar. Não frígida -em minha imaginação ansiava por abraçar-me, por ser possuída-, mas fria, pela simples razão de que era frio o barro da caverna. Faltava calor àquele corpo sem veias, sem sangue. Nada disso eu poderia suprir; faltava-me o sopro divino. Mas descobri um modo de aquecer ao menos a vagina. Enchia uma bexiga de cabra com água quente e deixava-a ficar ali por algum tempo. O calor da água aquecia o barro. Pronto. O cálido receptáculo estava em condições de me acolher. Enfim, estava tudo preparado para aquilo que eu estava chamando de noite de núpcias. Ao crepúsculo subi a montanha, entrei na nossa caverna, acendi a lamparina e lá estava Tamar, esperando-me. Joguei-me sobre ela, introduzi o pênis no competente orifício e fuque-fuque, fuque-fuque. Aquilo foi fantástico. Eu gemia, eu urrava até que, por fim, veio o cataclisma: uma verdadeira torrente de esperma. Só que Tamar, a minha Tamar, já não existia: voltara a ser uma informe massa de barro. Eu aniquilara o objeto de minha paixão. Claro, poderia refazê-la, mas isso era trabalho para muitos dias, e como obter satisfação nesse meio tempo? Não. Teria de possuir Tamar de outra maneira. Como? Pensando nela, nua, à minha espera. Tal devaneio me arrebataria, abriria em mim as comportas da paixão -mas, e o pênis? O pênis não se satisfaria com uma Tamar imaginária. O pênis queria mais. O pênis não queria imaginação, exigia contato físico, estímulo material.


O barro não funcionara? Então eu teria de arranjar outra coisa, isso era o que o pênis me dizia, e não deixava de ter razão: ao fim e ao cabo, a matéria vem antes do espírito


O barro não funcionara? Então eu teria de arranjar outra coisa, isso era o que o pênis me dizia, e não deixava de ter razão: ao fim e ao cabo, a matéria vem antes do espírito. E com isso o problema estava criado: com que eu substituiria a vagina de barro?

Ingenuidade e repugnância
A mão. Claro, eu sabia que a mão era usada para isso, não era tão ingênuo assim. Mas até então não usara minha mão. Tinha medo de fazê-lo. Repugnava-me fazê-lo.
Meu medo nascia de certas histórias que ouvira. Dizia-se que um jovem midianita costumava constantemente manipular-se com a mão esquerda. Depois de algum tempo começaram a brotar-lhe cabelos na palma dessa mão. Outro, horrorizado, imediatamente pararia com o hábito nefando e trataria de raspar os cabelos adventícios. Não ele. Armou sua tenda no meio do deserto e ali se refugiou, com suas fantasias e sua mão cabeluda. A cabeleira crescia cada vez mais; ele penteava-a, colocava nela pequenas flores. E, no dorso daquela mão, desenhou, com carvão, dois olhinhos, um nariz e uma boca. A essa criatura chamava de "minha noiva". Uma vez por dia, religiosamente, a noiva baixava até o pênis e vivia com este uma tórrida paixão; voltava de lá trêmula, a cabeleira agora desgrenhada cheia de esperma. A história teve um desfecho sombrio. A outra mão foi ficando cada vez mais enciumada. Um dia agarraram-se, as duas, e na briga a ciumenta quebrou dois dedos da outra. O midianita agarrou uma faca e cortou o polegar e o mínimo dessa mão direita.


Repugnava-me usar a mão como instrumento de fantasia; para mim, a mão fora feita para trabalhar: para empunhar o cajado do pastor e o cabo do martelo, para segurar firme a rabiça do arado


Sim, e repugnava-me usar a mão como instrumento de fantasia. Para mim, a mão fora feita para trabalhar: para empunhar o cajado do pastor e o cabo do martelo, para segurar firme a rabiça do arado. A mão podia ser usada também para apertar a mão de um amigo, para acariciar o rosto de uma criança. Agora... mão lá embaixo? Mão fazendo coisas vergonhosas? Contudo decidi experimentar. Quem me exigia era, claro, o pênis, impaciente pênis. Lá foi a mão, friccioná-lo, a princípio lentamente, desajeitadamente, logo mais rápido e com mais habilidade e por fim aquilo, a ejaculação.
Provisoriamente, servia. Mas comecei a trabalhar naquilo. Meu objetivo era prescindir da mão. Prescindir dela por completo. Para isso, eu deveria seguir algumas etapas. A primeira delas: reduzir a amplitude dos movimentos. A mão precisava saber que seu espaço no mundo (como o espaço de todas as criaturas) era limitado, que seu tempo no mundo (como o tempo de todas as criaturas) era limitado.
Essa etapa deu trabalho -domar a própria mão, conter sua impaciências, seus arroubos, nem sempre é fácil-, mas teve um resultado surpreendente. À medida que diminuía a área de incursão, aumentava a sensibilidade da pele do pênis. Aumentava e, espacialmente falando, concentrava-se. Em algumas semanas estava do tamanho de uma moeda e continuou diminuindo. Por fim era um ponto, um único ponto em que parecia localizar-se o minúsculo pertuito pelo qual era possível penetrar na vasta e escura caverna do desejo. Desejo que, como uma fera, dormia lá no fundo e que, ao ser despertado, mostrava toda sua pujança. Tudo isso, claro, graças ao meu fantástico poder de concentração.
Mas eu podia ir mais além. Na etapa seguinte, dediquei-me a eliminar por completo a necessidade do contato físico. Consegui-o: agora, eu chegava ao orgasmo sem tocar o pênis. Claro que a mão não gostou nada disso, relegada que agora estava a um segundo plano. Mas é que um valor mais alto se alevantava, o valor da imaginação. Eu pensava em Tamar, pensava na boca de Tamar, nos seios de Tamar, nas coxas de Tamar e pronto, lá estava o esperma esguichando.
Na trajetória que eu me propusera, isso representou um momento crítico. Porque havia uma outra e perturbadora possibilidade, uma possibilidade que eu não evocava sem aflição. Eu podia dispensar Tamar, a figura de Tamar. Podia prescindir de minha imaginação. Eu chegaria ao orgasmo mergulhado no Nada absoluto. Nada na mente, nada no coração e, nem é preciso dizer, nada na mão: nada na mão esquerda, nada na mão direita. Olha, mamãe, sem as mãos. Pobre mamãe, se soubesse o que o filho fazia na caverna.

Moacyr Scliar é escritor, autor de, entre outros, de "Os Leopardos de Kafka" (Companhia das Letras).


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