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Ponto de fuga
A imagem do historiador
Luisa Ciamitti - 11.jun.1999
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O historiador italiano Carlo Ginzburg |
Jorge Coli
especial para a Folha
A semiótica médica e o romance policial, a filosofia e a
filologia nutrem o modo com que Carlo Ginzburg faz
história. Mas essa maneira, original e profunda, se embebe sobretudo de história da arte: Morelli o convence
do caráter indiciário próprio ao insignificante. Em Longhi e Clark, apreende o papel da morfologia como sintoma da permanência de sentidos através dos tempos:
pela forma que eles tomam. De Warburg, de Panofsky
deriva sua intuição de que, assim como as imagens trazidas pela arte, as noções carregam em si ecos antigos,
em ressonâncias que as formam e deformam.
Tanto imagens quanto conceitos são "pré-concebidos" -e são "pré-conceitos". Um ótimo exemplo, em
"Olhos de Madeira" (Companhia das Letras), expõe os
sentidos traiçoeiros ocultos na frase proferida por João
Paulo 2º aos judeus, em busca de reconciliação: "Vocês
são nossos irmãos prediletos e, de certo modo, poderíamos dizer, nossos irmãos mais velhos". Inocente fórmula em aparência apenas: não vale desvendá-la aqui,
para não estragar a descoberta do leitor.
Ginzburg lançou-se na história da arte várias vezes,
uma delas com o livro "Indagações sobre Piero" (Paz e
Terra), no qual renova a compreensão de Piero della
Francesca. O ensaio que encerra sua última obra publicada no Brasil, "Relações de Força" (Companhia das
Letras), toma Picasso e Warburg diante do exotismo,
para explicitar a noção de estranhamento, de distância,
chaves essenciais em sua concepção de história.
Dos 9 - "Relações de Força" tem, como subtítulo, "História, Retórica, Prova". Ginzburg diz que o livro se insere num debate que vem travando "durante anos contra
o ceticismo, sem ceder, no entanto, ao positivismo". O
livro, felizmente, não é polêmico. Ele procede por análises essenciais para a compreensão do papel das fontes,
dos vínculos entre retórica e prova, sobre o lugar no
qual se encontram o historiador e seu objeto, sobre a
distância que os permeia. De sorte que, quando os frêmitos pós-modernos tiverem passado, ele continuará
atuante e essencial.
Uma das relações de força, obsessiva e reiterada por
Ginzburg, reside na pressão imposta pela familiaridade
que amortece.
Em entrevista, ele cercou o problema por duas questões nevrálgicas: "Como não ser enganado por uma realidade tão domesticada que nós nos aproximamos dela
como se fosse uma evidência, encontrando aí o que já
sabíamos de antemão? Como transformar o real em
enigma?". O outro que se metamorfoseia no mesmo: aí
está um dos grandes inimigos da história. O fascínio toma conta do leitor, constantemente, ao serem revelados
os mecanismos da domesticação e das evidências.
Gênese - Ginzburg declarou que só teve uma idéia em
sua vida. Que, sem falsa modéstia, ela é muito importante: "Nosso modo de conhecimento do passado é
profundamente orientado pela atitude de superioridade cristã em relação aos judeus". Disso decorre a própria noção de história, que põe a verdade em sintonia
com o tempo. Está exposto em "Distância e Perspectiva", capítulo do estupendo "Olhos de Madeira", mas o
autor resume bem numa declaração: "Nossa concepção
de história (...) repousa sobre a idéia de que alguma coisa pôde ser verdadeira em seu contexto, mas que essa
verdade é ultrapassada, e que pode ser superada por
uma verdade mais rica e mais profunda. Em suma, alguma coisa pode ser pensada como verdadeira e ao
mesmo tempo menos verdadeira que a verdade de hoje". Incorporam-se hoje as verdades do passado, como
o Novo Testamento incorporava o Antigo.
Pena - Ginzburg, filho de uma notável romancista, sublinha o papel heurístico do estilo. Sua escrita, rarefeita,
cheia de "brancos" herdados de Flaubert, é um poderoso fator de revelações e um instrumento que impede
qualquer percepção esquemática, qualquer malabarismo intelectual funambulesco. Há, diz ele, a "música do
raciocínio", criada pelo encadeamento das frases. É feita de nuances e pede ouvidos atentos.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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