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Livros
Os maus companheiros
Com material inédito, "O Cachorro de Rousseau" trata da relação entre o pensador nascido em Genebra e o escocês David Hume, pesos-pesados da filosofia
RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
David Edmonds e
John Eidinow se
especializaram em
conflitos dramáticos entre pensadores notáveis: "O Atiçador de
Wittgenstein" [Difel], por
exemplo, discute as várias versões de uma disputa entre o filósofo e seu colega Karl Popper, tendo talvez o primeiro
ameaçado o segundo com um
atiçador de lareira.
A última obra dos dois ["O
Cachorro de Rousseau"] aborda questão mais substancial,
que é o conflito entre Rousseau
e Hume -que nunca se tinham
encontrado antes de 1766, mas
em dois ou três meses tiveram
uma das brigas mais ásperas da
história da filosofia.
Jean-Jacques Rousseau, perseguido de fato mas também
sofrendo de mania de perseguição, é auxiliado por David Hume, que o leva para a Inglaterra
e pede -com sucesso- que o
rei Jorge 3º lhe dê uma pensão
vitalícia.
Contudo mesmo assim
Rousseau se convence de que
Hume é o cérebro de uma
conspiração para desmoralizá-lo, o que incluiria até mesmo as
cem libras anuais de Sua Majestade. O consenso dos comentadores é o de que, no caso,
Rousseau sucumbiu a sua paranóia. O "bom David" seria vítima, não bem de um ingrato,
menos ainda de um patife, mas
de um desequilibrado.
O mérito dos autores está em
retraçar, com exame de documentos há muito esgotados ou
nunca impressos, o conflito dos
dois. Simpatizam com Hume,
mais que com Rousseau. Mas
mostram que David não foi tão
bom quanto se dizia.
O conflito eclode quando,
pouco após Rousseau chegar a
Londres, sai na imprensa uma
carta falsa do rei da Prússia, o
"déspota esclarecido" Frederico, o Grande, ironizando Rousseau.
Suscetível, nosso autor sofre.
Imagina que Hume teve parte
na tal carta.
Ora, nisso ele acerta. O autor
da carta é Horace Walpole, mas
é de Hume a insinuação de que
o rei poderá aumentar os sofrimentos de Rousseau, se é isso o
que ele quer.
Certamente o iluminista escocês não viu nada de mal em
ironizar, num salão, o mesmo
filósofo que ele pretendia socorrer. Muita gente age assim:
percebe que alguém exagera no
sofrimento e mesmo assim o
acode; ou auxilia e ao mesmo
tempo percebe o exagero do
outro.
Mas, para Rousseau, isso era
fatal. O dinheiro e o conforto
material lhe importavam menos do que a certeza da amizade. Ora, essa Hume nunca lhe
deu. Aliás, a idéia de amizade
para Rousseau incluía exigências que o sociável Hume possivelmente nem entenderia.
Chamariz editorial
A narrativa é mais ou menos
essa. O cachorro de Rousseau,
Sultan, só ilustra a história. Não
tem maior importância para
Hume. Serve apenas de chamariz editorial.
E aqui está o problema. Os
autores sabem bem que tanto
Rousseau quanto Hume são
críticos do império da razão, o
primeiro pela sensibilidade de
que foi o grande defensor e vítima, o segundo pela crítica que
tece aos sistemas.
Mas David e John (curiosamente, homônimos dos dois filósofos) não vão além de superficialidades filosóficas. Salvo
quando comentam o que é a
amizade para Rousseau ou desmontam as mentiras de Hume,
o que dizem não nos permite
ver que estão lidando com dois
dos maiores filósofos que já
houve.
Poderiam ter ido mais longe?
Na filosofia, pelo menos no
Brasil, reservamos o nome de
"filósofos" a 30, talvez 50, pensadores entre o século 6º a.C. e
nosso tempo -mais ou menos
um a cada 60 ou cem anos.
É verdade que na França, no
mundo anglo-saxão e na mídia
brasileira se usa o termo com
maior complacência, mas os
acadêmicos de nosso país -e
isso apesar de às vezes serem tímidos quanto a sair da história
da filosofia para entrar na filosofia- são exigentes: "filósofo",
diferente de "sociólogo" ou
"historiador", não é uma descrição ou uma profissão, é um
elogio.
E poucos mereceram tal elogio como Rousseau e Hume.
Para além do anedótico
Por alguma razão que só
compreendo em parte, estudam-se na história da filosofia
sobretudo a teoria do conhecimento (onde navega Hume) e a
do ser, enquanto ética e filosofia política ficam como províncias próprias, mas apartadas.
Rousseau trata mais destas.
Mas não importa, são ambos
pensadores da maior envergadura. Terá então o (des)encontro deles sido apenas o choque
de um britânico que se dava
bem com os poderes do Estado
(mas não com os da Igreja) e
com os "salons" do seu século e
de um suíço que se dava mal
com os poderes em geral e com
a sociedade? Isso é pouco. O assunto merecia mais.
Até porque são raros os momentos dramáticos da nossa
história filosófica, como esses
em que Edmonds e Eidinow se
especializam. Uma peça de
Jean-Claude Brisville expôs "O
Encontro de Descartes com o
Jovem Pascal". Hobbes, por
sua vez, se avistou só uma vez
com Descartes, que não gostou
dele. A Folha deu particular
destaque, em 1994 [Mais! de
14/8/94], ao fim da amizade de
Sartre com Merleau-Ponty.
Em cada caso, há muito a dizer, além do anedótico.
Ou, concluindo de outro modo: a grande contribuição do
estruturalismo à leitura dos
textos literários e filosóficos
foi, nos anos 60 do século passado, eliminar a anedota e ir ao
cerne das obras.
Um exemplo ajudará. Por
muito tempo, o grande estudioso de Stendhal [romancista
francês, autor de "O Vermelho
e o Negro"] foi Henri Martineau, cuja contribuição, porém, com freqüência se concentrava na relação entre a vida do autor e as passagens de
suas obras que deveriam alguma coisa a ela.
Esse tipo de abordagem foi
liquidado pelo estruturalismo,
a custo, é verdade, de cindir demasiado vida e obra.
Vidas médias
Mesmo assim, hoje nenhum
estudioso sério da filosofia, da
literatura ou das artes reduziria
uma obra de relevo à vida de
seu autor ou deixaria de realçar
a superioridade da primeira sobre a segunda.
Na verdade, somos hoje como discretos cultores de um estranho mistério: como é que de
vidas médias, por vezes medíocres, brotam obras esplêndidas? Esse, por sinal, é o tema
que mais interessou a Fellini,
cujos personagens chegam a
ser risíveis, mas produzem
obras notáveis (basta lembrar
os músicos vaidosos, mas perfeitos de "E la Nave Va").
Pois bem, é isso o que falta no
"Cachorro de Rousseau", como
por sinal faltava no "Atiçador
de Wittgenstein".
Mesmo assim, faço questão
de dizer: se o "Atiçador..." não
deixava maiores resultados,
talvez pela pouca relevância
(afinal de contas) do episódio
dramático, pelo menos o "Cachorro..." reúne material pouco
ou não conhecido que permitirá, a quem o quiser, empreender um estudo mais sério.
Recomendaria que um estudante de doutorado se debruçasse sobre ele e tentasse uma
obra de fôlego sobre o desentendimento e o destrato entre
os autores da "Investigação sobre o Entendimento Humano"
e do "Contrato Social".
RENATO JANINE RIBEIRO é professor de ética
e filosofia política na USP e diretor de avaliação
da Capes. É autor de, entre outros, "Ao Leitor
sem Medo" (Ed. UFMG).
O CACHORRO DE ROUSSEAU
Autores: David Edmonds
e John Eidinow
Tradução: Pedro Sette Câmara
Editora: Nova Fronteira (tel. 0/xx/21/
2131-1111)
Quanto: R$ 49,90 (384 págs.)
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