São Paulo, domingo, 21 de julho de 2002

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Ensaísta norte-americano analisa os romances de Machado de Assis e comenta os estudos críticos de Roberto Schwarz dedicados ao "bruxo do Cosme Velho"

UM MESTRE ENTRE RUÍNAS


Michael Wood
especial para o "New York Review of Books"

As obras de Joaquim Maria Machado de Assis são repletas de sabedoria melancólica ou de algo que se parece à sabedoria melancólica: ligeiramente cansada, ligeiramente amarga, altamente divertida. Piadas, fábulas, epigramas e analogias florescem tão profusamente em suas páginas que acabam por se tornar uma assinatura. Mas será que chegam a ser uma voz? E, nesse caso, voz de quem? Antonio Candido, o grande crítico brasileiro, apontou há muito tempo que, em Machado, "as mais desmedidas surpresas" surgem "na razão inversa de sua prosa elegante e discreta".
Assim, no romance "Quincas Borba" [tradução de Gregory Rabassa, 336 págs, US$ 13,95, Oxford University Press", uma pobre mulher está sentada, chorando, ao lado de seu casebre ainda em chamas. Um bêbado aproxima-se e pergunta se pode acender seu charuto nas labaredas. Não tardamos a deduzir a moral -a indiferença ao sofrimento alheio, a exploração da miséria dos outros- e nos damos por satisfeitos. Machado deduz essa moral também, ainda que mal se demore nela antes de passar a outra, bem mais inesperada. O bêbado, diz ele, demonstra respeito genuíno ao "princípio da propriedade -a ponto de não acender o charuto sem pedir licença à dona das ruínas". A piada é sobre a propriedade ou sobre o culto ao princípio?
Machado foi sem dúvida um "mestre", como quer o título de um dos livros de crítica resenhados aqui [Roberto Schwarz, "A Master on the Periphery of Capitalism: Machado de Assis", tradução de John Gledson, 264 págs., US$ 18,95, Duke University Press, co-editado no Brasil pelas editoras 34 e Duas Cidades", um dos grandes escritores de todo o mundo. Mas um mistério paira sobre sua obra. Ou melhor, dois mistérios: um é brasileiro, o outro, internacional. O mistério brasileiro refere-se ao desenvolvimento de sua ficção mais longa.
Machado escreveu nove romances, os quatro primeiros numa veia que ele mesmo chamou de "romântica" -Roberto Schwarz, renomado crítico brasileiro, considera-os "um conjunto de narrativas médias e provincianas". São eles: "Ressurreição" (1872), "A Mão e a Luva" (1874), "Helena" (1876) e "Iaiá Garcia" (1878). Vêm em seguida cinco obras indiscutivelmente maiores, e o mistério está na diferença entre os dois conjuntos.
Os cinco romances maduros são "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881), "Quincas Borba" (1891), "Dom Casmurro" (1900), "Esaú e Jacó" (1904) e "Memorial de Aires" (1908). Creio que a fenda entre os dois tende a ser exagerada, e o último romance de Machado, por sutil e elegíaco que seja, é talvez tênue e lento demais para ser uma obra-prima. Aliás, não difere tanto dos primeiros em tom e estilo. Seja como for, há algo a ser decifrado.
A primeira explicação para o mistério brasileiro, afirma John Gledson em sua introdução ao livro de Schwarz, concentrava-se em aspectos da vida de Machado (uma doença grave, a visão comprometida), no suposto pendor pessimista ou em influências literárias como "Tristram Shandy" [de Laurence Sterne (1713-68)]. Mas a verdadeira questão, ao menos de início, é formal e interna. Como entender a súbita mudança de método, a passagem da graciosa narração em terceira pessoa aos extravagantes trejeitos modernistas, incluindo a cronologia emaranhada, o comentário reflexivo, as digressões, narradores em primeira pessoa altamente inconfiáveis, alusões proliferantes, histórias omitidas ou interrompidas, páginas cheias de pontos, títulos idiossincráticos, referências constantes ao caráter livresco dos livros e apóstrofes provocativas a vários leitores imaginários, como na "Lolita" de Nabokov?


Não há quem o leia sem considerá-lo um mestre -mas quem o lê, quem já ouviu falar dele?


Schwarz, cujo livro "Um Mestre na Periferia do Capitalismo" foi publicado em português em 1990, não descarta uma explicação biográfica e afirma ponderadamente: "Talvez se pudesse imaginar que Machado havia completado a sua ascensão social, mas não alimentava ilusões a respeito, nem esquecia os vexames da situação anterior". Mas Schwarz concentra-se nas propriedades formais dos romances maduros -e indaga menos a origem que o sentido da mudança. Contudo, tanto para Schwarz quanto para o Lukács da "Teoria do Romance" (ed. 34), a forma não é uma abstração e não se esquiva ao tempo e à história. Ela é: "a) uma regra de composição da narrativa, e b) a estilização de uma conduta própria à classe dominante brasileira". Para esse modelo, a literatura não apenas representa a história como conjunto de eventos singulares e cumulativos como também a habita e articula, falando a língua com que cada época dialoga consigo mesma. O lance de Machado é ao mesmo tempo estético e político, um modo de espreitar as classes dominantes sem parecer divergir delas, um modo de fazer -como diz Schwarz a certa altura- com que se condenem por si sós, sem que saibam o que estão fazendo. De resto, para isso foram feitos os narradores inconfiáveis: há sempre uma condenação, ainda que nem sempre a condenação de uma classe inteira.

Memórias póstumas
"Um Mestre na Periferia do Capitalismo" é dedicado exclusivamente ao romance inovador de Machado, as "Memórias Póstumas de Brás Cubas" ["The Posthumous Memoirs of Brás Cubas], trad. Gregory Rabassa, Oxford University Press, 256 págs., US$ 25". Nem tudo o que está dito aí vale para as obras seguintes, mas tudo o que se diz sobre o romance em pauta é convincente. Em seu contexto ficcional, as memórias são literalmente póstumas. Como ele mesmo anuncia num maravilhoso jogo de palavras, Brás Cubas não é um escritor que morreu ("um autor defunto"), mas um morto que deu para escrever ("um defunto autor"). Ele quer que acreditemos que sua situação o torna superior às trivialidades da vida cotidiana, e muitos leitores e críticos levaram-no a sério. Mas é evidente, como escreve Schwarz, que Brás Cubas é "tão mesquinho e perseguido por vaidades sociais quanto a mais lamentável de suas personagens (...) A comédia está justamente nas paixões terrenas do vivíssimo defunto". Brás Cubas morto quer fazer com suas palavras o que bem entender, assim como imagina ter feito com sua vida o que bem entendesse. Ele reconta sua infância de mimos, suas dissipações de adulto e seu fracasso em deixar qualquer marca sobre sua época, como se tudo isso formasse uma narrativa de sucessos superlativos. Mas é claro que o capricho extremado é uma forma de cativeiro, e esse é um romance fundado sobre aquilo que Schwarz chama de "inadequação calculada das atitudes do narrador ao material representado". No caso, "inadequação" significa menos "insuficiência" que "incompreensão", um lapso moral e psicológico. A perfeição da escrita reside na complexidade dos erros arremedados. Schwarz cita Benjamin, que descrevia Baudelaire "um agente secreto -um agente da insatisfação secreta de sua classe com a própria dominação". Se Machado é um agente, Brás Cubas é sua fachada desavisada e complacente. Um bom exemplo que suscita o melhor da crítica lúcida e veemente de Schwarz é a defesa cínica que Brás Cubas faz de seu cunhado Cotrim -uma defesa que representa a perdição para o acusado e o defensor. Há quem diga que Cotrim é um bárbaro: "O único fato alegado neste particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue: mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais". O "único fato" parece mais que o bastante, e o ligeiro excesso de dureza ("o trato um pouco mais duro") é desmentido pelo sangue que escorre. A menção ao contrabando tenta transformar o crime em desculpa, e o argumento a respeito das relações sociais põe o pensamento liberal de ponta-cabeça. Schwarz nota que as verdades vexaminosas não são escamoteadas, apenas reinterpretadas. Isso equivale à "civilidade intra-elite, fazendo mostra do melhor da cultura contemporânea".

Graça soturna
O que o livro de Schwarz não nos diz é por que o romance é tão engraçado quanto soturno. Nem sempre Brás Cubas é a mera fachada de Machado: muitas vezes ele é crítico e irônico por si só. O próprio Schwarz tem ouvido para o humor e examina várias vezes os efeitos cômicos e farsescos da obra.
Mas sua tese é um tanto severa e inflexível, mesmo quando o assunto não é a escravidão. E se não formos cativados para a "comédia ideológica brasileira" em cena? Será que a única alternativa consiste em cair presa dos encantos narrativos de Brás Cubas, tornando-nos cúmplices de classe à distância? Schwarz preocupa-se com isso: "Machado se vale, com absoluta mestria, dos recursos ideológicos e literários mais prezados por sua vítima", gerando "uma semelhança entre a crítica feroz e a apologia, o que pode levar a confusão".
Com isso, chegamos ao segundo mistério, agora internacional. Os romances de Machado têm sido publicados em inglês e em outras línguas há uns 50 anos. Não há quem o leia sem considerá-lo um mestre -mas quem o lê, quem já ouviu falar dele? Quando converso sobre Borges, tenho que pronunciar claramente o nome, mas não tenho que dizer quem ele é. Em 1990, apresentando uma nova edição das "Memórias Póstumas", Susan Sontag se dizia "espantada ao ver que um escritor dessa grandeza ainda não ocupa o lugar que lhe cabe".
Ela então concluía com eloquência: "Amar este livro implica tornar-se menos provinciano quanto à literatura e às suas possibilidades". Será que nós nos tornamos menos provincianos nestes últimos 12 anos?
Agora temos quatro novas traduções: "Memórias Póstumas", "Quincas Borba", "Dom Casmurro" e "Esaú e Jacó" ["Esau and Jacob", tradução de Elizabeth Lowe, Oxford University Press, 368 págs, US$ 16,95" . São fluentes e firmes -mas as antigas, em sua maioria, também o eram.
Na coletânea de ensaios organizada por Richard Graham ["Machado de Assis: Reflections on a Brazilian Master Writer", University of Texas Press, 144 págs, US$ 11,95", Gledson formula a pergunta espinhosa; ele se refere a "Dom Casmurro", mas podemos ampliar seu âmbito para o conjunto da obra: "Será que estamos vendendo o romance errado?". Gledson quer dizer que nos esforçamos para promover o romance a obra-prima internacional, sem maior disposição para falar de seu contexto brasileiro.
Creio que há alguma razão nisso -e concordo que Machado é um mestre por conta de seu ambiente e de seus temas brasileiros, não apesar deles. Mas ainda precisamos saber em que consistem a mestria e a modernidade de Machado, por que seus romances são mais que documentos históricos, mais que os documentos oblíquos e sofisticados que Schwarz identifica.
A meu ver, há um começo de resposta na hipótese de João Adolfo Hansen (recolhida na coletânea de Graham), para quem Machado construiu seu estilo a partir das "ruínas de um tempo morto", dos "resquícios arruinados de um mundo pré-moderno". Essa não é uma busca do tempo perdido, mas um memorial de sua perda, e mesmo o memorial pode ser uma ficção. Em seu ensaio sobre "O Narrador", Walter Benjamin escreveu que um provérbio é "uma ruína no lugar de uma velha história", e poderíamos dizer que Machado escreveu provérbios narrativos irônicos, que sabem de seu próprio desamparo. Nada mais moderno que uma ruína dessas.
A situação configura-se mais claramente em "Dom Casmurro", cujo narrador, Bento Santiago, está tentando reconstruir sua vida, alcançando apenas o que ele mesmo reconhece como simulacro. Bento é um narrador ainda mais inconfiável que Brás Cubas: mesmo que possa ser engraçado, ele é mais ansioso e ignorante.
Mas o texto que ele escreve não é estritamente ambíguo, e sim indeterminado. Bento é suficientemente tolo e obnubilado para ser facilmente traído, além de suficientemente vaidoso para inventar o adultério da mulher a partir de nada. Está convencido de sua própria história: "Uma cousa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me...".
Destino ou paranóia? Ou mero conto?
Podemos aceitar a história de Bento, como fizeram os primeiros críticos, ou podemos rejeitá-la, como tendem a fazer os críticos modernos, mas não podemos fazer as duas coisas ao mesmo tempo, e Machado não está nos convidando a um cômodo ceticismo quanto à verdade alcançável. Ele nos faz lembrar que temos que tomar decisões a partir do que sabemos, o que raras vezes é o bastante. "A verossimilhança (...) é muita vez toda a verdade", diz Bento ao início de seu conto. Ele quer dizer que as aparências são muitas vezes tudo o que temos e que as coisas às vezes são o que parecem ser.
Entretanto, uma vez que essa proposição vem de um homem que devastou várias vidas, incluindo a própria, com base em sua leitura dos olhos alheios e em pouco mais que o que lhe parecia uma inegável semelhança entre o filho e o amigo, podemos chegar a uma conclusão diferente. Poderíamos dizer que cada um pode fazer o que bem entender com as aparências, na medida em que não tenha mais que elas.
Em "Quincas Borba", o provérbio recorrente é a expressão aparentemente simples "ao vencedor as batatas", que Schwarz tomou emprestado para título de seu estudo sobre os primeiros romances de Machado, publicado em 1977 (ed. 34). Trata-se obviamente de uma versão burlesca de expressões como "quem ganha leva"; em seu contexto, sugere também a "sobrevivência dos mais aptos". A frase é cunhada pelo filósofo excêntrico Joaquim Borba dos Santos, que aparece tanto no romance que leva seu nome quanto nas "Memórias Póstumas". Quincas é fundador de uma doutrina que chama de "humanitismo", a qual ensina, entre outras coisas, que não há morte, apenas mudança e luta pela vida. Isso é darwinismo social livre de culpa, o travesti machadiano das idéias modernas retrabalhadas pelo subdesenvolvimento. Estamos no melhor dos mundos possíveis, e Quincas repetidamente assevera que Pangloss não era o tolo por que Voltaire o tomava.
Quincas morre e deixa sua fortuna considerável para o amigo Rubião, que agora entende o humanitismo como nunca antes. "Ao vencedor as batatas", diz consigo, até que adota a expressão como mote mental. Não porque tenha lutado por seu dinheiro ou tenha feito algo para consegui-lo, exceto por alguns atos de gentileza em direta contradição com a teoria militante de Quincas, mas só porque agora o dinheiro é seu. Não é que o vencedor fique com as batatas -o dono das batatas é que é o vencedor, não importa como as tenha conseguido. Machado comenta laconicamente: "Tão certo é que a paisagem depende do ponto de vista, e que o melhor modo de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo na mão".
Ao fim do livro, Rubião gastou, emprestou ou perdeu todo o dinheiro que Quincas lhe deixara, ficando sozinho com o cachorro de Quincas Borba, que também atende pelo mesmo nome. Rubião não tem batatas, mas ainda adora a fórmula, que lhe serve de obscuro consolo. "Não se lembrava inteiramente da alegoria; mas a palavra deu-lhe o sentido vago da luta e da vitória." Rubião e o cachorro vagueiam pelas ruas chuvosas de uma cidade na província brasileira, ambos encharcados -mas o cão, sem o consolo de uma frase de efeito. "Ao vencedor as batatas", grita Rubião. Pouco depois ele morre, vítima não da sociedade ou da natureza, mas da incapacidade generalizada de compreender que os provérbios e o mundo não caminham em pé de igualdade.
Em "Esaú e Jacó", encontramos aquela que provavelmente é a mais interessante dessas ruínas, uma alegoria tão transparente que parece excluir a interpretação alegórica. Pedro e Paulo são irmãos gêmeos, ambos apaixonados pela mesma mulher, Flora. Ela ama os dois, ou melhor, ela ama o par. Quando um deles se ausenta, ela sente que seu amor não é completo. Os irmãos supostamente brigam entre si desde o ventre da mãe, como Esaú e Jacó, e vêm mantendo a tradição desde então. Pedro é médico, Paulo é advogado; Pedro é monarquista, Paulo é republicano desde a infância -e possuem retratos de Luís 16 e Robespierre, respectivamente. Sua mãe gostaria que fizessem as pazes; Flora só quer vê-los juntos.
Sem ter como escolher entre eles, Flora morre como uma heroína vitoriana, de uma moléstia que não pode ser outra coisa senão seu dilema intratável. À beira do leito de morte, os gêmeos prometem que não lutarão mais e quebram a promessa. Prometem o mesmo à mãe moribunda, mas também não cumprem. O que esperávamos? Que Esaú e Jacó reescrevessem sua história e partilhassem seus pratos de sopa?
Sabemos que Bento Santiago inventou a história de seu destino, por verdadeiro que este seja. Mas por que Pedro e Paulo não podem parar de brigar? Qual seria a natureza dessa necessidade? Num certo nível, a questão é descabida. "Necessidade" é apenas um outro nome para "Machado", uma vez que foi ele quem montou o enredo esquemático e insolúvel. Com alguns golpes de pena, poderia ter transformado os gêmeos ou obrigado Flora a escolher. Mas, com isso em mente, podemos olhar com outros olhos para o que ele de fato fez.
Machado montou uma alegoria óbvia demais para ser aceita em seus termos, rígida demais para não incluir uma troça da noção de alegoria, por toda a proliferante realidade política e psicológica que ela deixa de fora. Mas a alegoria não é falsa. Países e pessoas têm que escolher e muitas vezes não conseguem escolher, meramente embaralhando as alternativas e imaginando ter encontrado um centro qualquer.
Isso é o que Flora não faz, preferindo morrer. Além disso, partidos políticos e grupos sociais prolongam suas lutas além de qualquer razão para lutar, pois muitas vezes a luta se tornou razão de viver, definição de suas essências. No "Memorial de Aires" (1908), Machado comenta de modo esquivo que "a reconciliação eterna, entre dois adversários eleitorais, devia ser exatamente um castigo infinito". Ao armar a estrutura alegórica simultaneamente como destino (para as personagens) e como ficção (para o autor e o leitor), Machado convida-nos a pensar não apenas nas escolhas que fazemos, mas também sobre a própria possibilidade de escolha, sobre aqueles momentos em que, a despeito de todas as aparências de liberdade, não sabemos exatamente quão livres somos.
Schwarz cita Benjamin, que considera Baudelaire nosso contemporâneo (ou ao menos contemporâneo de Benjamin) porque as condições que ele havia explorado e dramatizado ainda não se foram. Eu diria que Machado é nosso contemporâneo porque suas preocupações ressurgem em todo lugar, como formações de nuvens ou protestos políticos, e porque não temos certeza sobre quem ele é. Suas obras são como aqueles "livros omissos" que Bento Santiago nos recomenda.
Os provérbios e ruínas que acabo de evocar -o jogo de aparência e desejo, o mundo de contingências difusas- têm domicílio no Brasil de Machado, mas também topamos com eles em outros lugares e provavelmente não vamos parar de reencontrá-los. Não que o mundo não tenha mudado ou que os países não sejam diferentes entre si. Mas a mudança e a diferença têm formas históricas precisas, e Machado soube agarrá-las em movimento. "O tempo é um tecido invisível", diz seu narrador em "Esaú e Jacó", "em que se pode bordar tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um túmulo. Também se pode bordar nada. Nada em cima de invisível é a mais sutil obra deste mundo, e acaso do outro". Como se vê, o nada de Machado não era pouca coisa.

Michael Wood é professor de literatura inglesa e comparada na Universidade Princeton. É autor de, entre outros, "The Magician's Doubts - Nabokov and the Risks of Fiction" (As Dúvidas do Mágico - Nabokov e os Riscos da Ficção", Princeton University Press). A íntegra deste texto foi publicada no "New York Review of Books".
Tradução de Samuel Titan Jr.


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