São Paulo, domingo, 21 de julho de 2002 |
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+ livros "Autores Brasileiros", que dá sequência à publicação das obras completas de Sílvio Romero, traz um ataque virulento a Machado de Assis por um dos pioneiros da crítica no país O MÉTODO DO DESTEMPERO
Roberto Ventura
As obras de Sílvio Romero, o crítico polêmico e apaixonado do final do século 19 e início do 20,
que lutava contra tudo e contra
todos, têm finalmente uma edição à altura de sua importância e do barulho que
causaram à época. A editora Imago e a
Universidade Federal de Sergipe estão
lançando "Autores Brasileiros", sexto
volume das "Obras Completas" de um
dos pioneiros da crítica literária, cujos
escritos se encontravam praticamente
esquecidos.
preparava. Suas engajadas obras de críticas literária e filosófica, sempre marcadas pela controvérsia, devem ser entendidas no contexto histórico do combate ao romantismo, cujo indianismo identificava a uma alienada cultura da corte, e da luta contra a escravidão e a monarquia, tendo sido um entusiasmado propagandista da Abolição e da república. Nascido em 1851 em Lagarto, Sergipe, filho de um comerciante português com uma brasileira, introduziu a abordagem histórico-social nos estudos literários com a "História da Literatura Brasileira" (Imago), de 1888, e foi um dos primeiros pesquisadores do folclore e da poesia popular com os "Estudos sobre a Poesia Popular no Brasil", as coletâneas "Cantos Populares do Brasil" (Itatiaia) e os "Contos Populares do Brasil" (Landy). Bate-boca folclórico Curiosamente, acabou por incorporar a linguagem virulenta dos cantadores nos desafios poéticos às ruidosas polêmicas que travou com seus contemporâneos, como os críticos Araripe Júnior e José Veríssimo, os historiadores Manuel Bonfim e Teófilo Braga, o jornalista Francisco de Assis Chateaubriand, depois conhecido como Chatô, e até o escritor Machado de Assis, que provocou para debate, mas encontrou apenas da parte deste o silêncio do desdém. Dotado de uma impressionante erudição, que mobilizava para esmagar o adversário, Romero era atrevido e exagerado. Foi protagonista em 1875 de uma célebre defesa de tese na Faculdade de Direito de Recife, cujas portas se fecharam para o abusado candidato, que xingou a banca de "corja de ignorantes", por terem questionado o enfoque histórico que propunha para o direito. O bate-boca, embora folclórico, tinha implicações políticas, pois decorria de sua tese o corolário de que as instituições deveriam "evoluir" junto com os costumes e a sociedade, o que tornava possível a crítica à ordem política e econômica, amparada na coroa lusitana e no braço escravo. "Autores Brasileiros", agora publicado, traz a mais gritante prova de suas ousadias: o tão absurdo quanto divertido livro "Machado de Assis - Estudo Comparativo de Literatura Brasileira". Romero lançou tal estudo em 1897, no mesmo ano em que o escritor fluminense (1839-1908), já consagrado por romances como as "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Quincas Borba", era eleito por unanimidade presidente da recém-fundada Academia Brasileira de Letras. Escreve assim o livro na inglória tentativa de detonar a reputação de Machado, cuja obra seria, em sua opinião, falha pela ausência de retratos dos costumes e paisagens, além de "atrasada" pela incapacidade deste "filho retardatário do romantismo" de acompanhar a "marcha das idéias modernas"! Ataca também a falta de engajamento político do escritor, que adotava um tom cético e irônico em relação ao progresso. Em uma maldosa alusão à gagueira e à epilepsia de Machado, conclui que seu estilo pouco original e pessoal, com frase e vocabulário travados, era a "fotografia exata" de sua "índole psicológica indecisa": "Vê-se que apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da palavra". Afirma ainda, como referência à sua pele escura, que o escritor era um "genuíno representante da sub-raça brasileira cruzada", cujo humor e pessimismo, em desacordo com o caráter nacional brasileiro, não passaria de imitação afetada de autores ingleses, como o Laurence Sterne de "A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy"! A origem de sua diatribe contra Machado foi o artigo deste em 1879 sobre a "nova geração" de poetas adeptos dos novos credos científicos, dentre eles o próprio Romero, que exercitara sua verve poética nos "Cantos do Fim do Século". O escritor percebeu a fragilidade de tal programa literário, baseado na propagação do ideário naturalista, e observou que faltava estilo aos escritos do poeta-crítico. Comentou ainda, com genial ironia, sobre a fé no progresso de seus contemporâneos: "É o inverso da tradição bíblica, pois o paraíso é sempre colocado no fim...". Romero nunca perdoou a fina ironia machadiana a respeito da nova geração. Tomado pela idéia fixa de provar a precedência da Escola do Recife na renovação cultural brasileira a partir de 1870, dedicou "Machado de Assis" aos companheiros do grupo e se propôs a fazer um estudo "comparativo" entre o escritor fluminense, seu desafeto, e o poeta, jurista e filósofo Tobias Barreto de Meneses (1839-1889), seu contemporâneo, conterrâneo, condiscípulo e compadre, a quem julgava superior a Machado como prosador e a Castro Alves como poeta! "Autores Brasileiros" traz ainda os estudos dedicados aos poetas Valentim Magalhães (1859-1903) e Luís Murat (1861-1920), ao dramaturgo Martins Pena (1815-1848) e ao ficcionista Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), além do impagável "Zeverissimações Ineptas da Crítica", escrito contra o seu arquiinimigo, José Veríssimo, que xinga de tudo, até de "tucano empalhado", "basbaque literário" e "pardo irrecusável"! Estes estudos revelam o calcanhar-de-aquiles de seu método crítico, que continha implícita uma teoria da imitação, que negava o caráter específico da literatura, valorizada à medida que reproduzia aspectos da vida nacional. Tal paradoxo da crítica romeriana foi observado por Luiz Costa Lima em "Dispersa Demanda" (ed. Francisco Alves, 1981): "A literatura deveria ser como achamos que somos". Torna-se assim vicioso o círculo hermenêutico entre crítico e obra, já que esta fica reduzida à confirmação de suas certezas prévias. A edição de Luiz Antonio Barreto apresenta porém dois pequenos descuidos. No estudo introdutório de Salete de Almeida Cara, reproduz-se um erro da edição anterior de "Machado de Assis", publicada pela editora da Unicamp em 1992, mas corrigida nesta em errata, quando a crítica afirma que Sílvio Romero relançou em 1935 o estudo sobre Machado, edição que foi de fato lançada em 1936 por seu filho Nelson Romero. Mais grave ainda é a supressão, na presente edição, da dedicatória de Romero aos seus companheiros da Escola do Recife e do subtítulo "Estudo Comparativo de Literatura Brasileira", que revelam que seu verdadeiro objetivo era valorizar a obra de Tobias Barreto, em detrimento da de Machado. Mas, como tão bem sintetizou Antonio Candido sobre as ambiguidades do crítico: "O que se tira de Sílvio Romero com uma das mãos, é preciso dar de volta com a outra". O bate-boca, embora folclórico, tinha implicações políticas, pois decorria de sua tese o corolário de que as instituições deveriam "evoluir" junto com os costumes e a sociedade, o que tornava possível a crítica à ordem política e econômica, amparada na coroa lusitana e no braço escravo. "Autores Brasileiros", agora publicado, traz a mais gritante prova de suas ousadias: o tão absurdo quanto divertido livro "Machado de Assis - Estudo Comparativo de Literatura Brasileira". Romero lançou tal estudo em 1897, no mesmo ano em que o escritor fluminense (1839-1908), já consagrado por romances como as "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Quincas Borba", era eleito por unanimidade presidente da recém-fundada Academia Brasileira de Letras. Escreve assim o livro na inglória tentativa de detonar a reputação de Machado, cuja obra seria, em sua opinião, falha pela ausência de retratos dos costumes e paisagens, além de "atrasada" pela incapacidade deste "filho retardatário do romantismo" de acompanhar a "marcha das idéias modernas"! Ataca também a falta de engajamento político do escritor, que adotava um tom cético e irônico em relação ao progresso. Em uma maldosa alusão à gagueira e à epilepsia de Machado, conclui que seu estilo pouco original e pessoal, com frase e vocabulário travados, era a "fotografia exata" de sua "índole psicológica indecisa": "Vê-se que apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da palavra". Afirma ainda, como referência à sua pele escura, que o escritor era um "genuíno representante da sub-raça brasileira cruzada", cujo humor e pessimismo, em desacordo com o caráter nacional brasileiro, não passaria de imitação afetada de autores ingleses, como o Laurence Sterne de "A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy"! A origem de sua diatribe contra Machado foi o artigo deste em 1879 sobre a "nova geração" de poetas adeptos dos novos credos científicos, dentre eles o próprio Romero, que exercitara sua verve poética nos "Cantos do Fim do Século". O escritor percebeu a fragilidade de tal programa literário, baseado na propagação do ideário naturalista, e observou que faltava estilo aos escritos do poeta-crítico. Comentou ainda, com genial ironia, sobre a fé no progresso de seus contemporâneos: "É o inverso da tradição bíblica, pois o paraíso é sempre colocado no fim...". Romero nunca perdoou a fina ironia machadiana a respeito da nova geração. Tomado pela idéia fixa de provar a precedência da Escola do Recife na renovação cultural brasileira a partir de 1870, dedicou "Machado de Assis" aos companheiros do grupo e se propôs a fazer um estudo "comparativo" entre o escritor fluminense, seu desafeto, e o poeta, jurista e filósofo Tobias Barreto de Meneses (1839-1889), seu contemporâneo, conterrâneo, condiscípulo e compadre, a quem julgava superior a Machado como prosador e a Castro Alves como poeta! "Autores Brasileiros" traz ainda os estudos dedicados aos poetas Valentim Magalhães (1859-1903) e Luís Murat (1861-1920), ao dramaturgo Martins Pena (1815-1848) e ao ficcionista Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), além do impagável "Zeverissimações Ineptas da Crítica", escrito contra o seu arquiinimigo, José Veríssimo, que xinga de tudo, até de "tucano empalhado", "basbaque literário" e "pardo irrecusável"! Estes estudos revelam o calcanhar-de-aquiles de seu método crítico, que continha implícita uma teoria da imitação, que negava o caráter específico da literatura, valorizada à medida que reproduzia aspectos da vida nacional. Tal paradoxo da crítica romeriana foi observado por Luiz Costa Lima em "Dispersa Demanda" (ed. Francisco Alves, 1981): "A literatura deveria ser como achamos que somos". Torna-se assim vicioso o círculo hermenêutico entre crítico e obra, já que esta fica reduzida à confirmação de suas certezas prévias. A edição de Luiz Antonio Barreto apresenta porém dois pequenos descuidos. No estudo introdutório de Salete de Almeida Cara, reproduz-se um erro da edição anterior de "Machado de Assis", publicada pela editora da Unicamp em 1992, mas corrigida nesta em errata, quando a crítica afirma que Sílvio Romero relançou em 1935 o estudo sobre Machado, edição que foi de fato lançada em 1936 por seu filho Nelson Romero. Mais grave ainda é a supressão, na presente edição, da dedicatória de Romero aos seus companheiros da Escola do Recife e do subtítulo "Estudo Comparativo de Literatura Brasileira", que revelam que seu verdadeiro objetivo era valorizar a obra de Tobias Barreto, em detrimento da de Machado. Mas, como tão bem sintetizou Antonio Candido sobre as ambiguidades do crítico: "O que se tira de Sílvio Romero com uma das mãos, é preciso dar de volta com a outra". Roberto Ventura é professor de teoria literária e literatura comparada na USP e autor de "Estilo Tropical" (Companhia das Letras) e "Folha Explica Casa-Grande & Senzala" (Publifolha). Autores Brasileiros 644 págs., R$ 65,00 de Sílvio Romero. Org. de Luiz Antonio Barreto. Editora Imago (r. Santos Rodrigues, 201-A, CEP 20250-430, RJ, tel. 0/xx/21/2502-9092). Texto Anterior: + livros: Um mestre em ruínas Próximo Texto: Entre o campo e a cidade Índice |
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