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EDUARDO GIANNETTI
O autor
Machado disseca, Rosa fabula.
Metade de mim pondera, metade
de mim oscila. Qual deles?
Premido pelo apuro, invoco
Drummond: "Serei fraco
iletrado, pálido mineirinho, o juiz
da contenda?". Nem toda
pergunta admite uma resposta
definitiva.
Por temperamento e afinidade
anglo-analítica, tendo a preferir
Machado; mas por encanto e
feitiço teuto-dialético, inclino-me ao mistério de Rosa.
Diante de gênios polares e
incontestáveis como eles,
desbravadores da língua e da
arte de dizer o que não se deixa
falar, não há veredicto possível.
Qualquer balança é precária,
toda relação de preferência é
instável. Machado e Rosa são
inventores da língua. Um lapida
milagres em estrita adesão a
regras e restrições formais; o
outro inunda, subverte e
expande torrencialmente o
espectro de virtualidades da
nossa língua.
Em justiça a cada um deles e a
nós mesmos, o placar da
contenda só pode ser um empate
técnico no infinito.
A obra
Coloque "Dom Casmurro" e
"Grande Sertão" lado a lado: os
subterrâneos de um subúrbio
carioca e o sertão metafísico das
gerais, um Otelo anêmico e um
Fausto jagunço.
A obra-prima de Machado é o
primado da hiperconsciência
crítica, do autocontrole
expressivo, da lâmina
implacável da razão sobre
qualquer aspiração de
transcendência ou enlevo
espiritual. Rosa é o avesso disso:
intuição, revelação, esperança
agreste a brotar "mesmo do
meio do fel do desespero".
Tudo em sua obra máxima é
senha de outra vida, irrupção
criptográfica, fresta de mistério.
Se Machado cavalga a linguagem
munido de esporas e rédea curta,
Rosa é como que cavalgado ou
possuído por ela. Em "Dom
Casmurro", a operação devassa
de um pessimismo viril; no
"Grande Sertão", a religião da
confiança cósmica: a vitória
sobre o mal por meio de um
pacto com o mal.
A singular coincidência deste
duplo centenário de brasileiros
imortais dá o que pensar. Se
Machado e Rosa foram
possíveis, o Brasil é possível.
EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA é economista e professor do Ibmec São Paulo. Está lançando "O Livro das Citações" (Cia. das Letras).
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