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Operário-padrão
Após começar a trabalhar aos 13 anos, ex-campeão de corte está hoje, aos 35, com uma hérnia
e a coluna "travada"
DOS ENVIADOS AO INTERIOR DE SP
V
aldecir da Silva
Reis, o graveto que
consome seus dias
deitado na cama a
ver TV, já foi um
campeão. Não tinha para ninguém. Na lavoura, batia recorde em cima de recorde.
Em 20 de março de 2006, colheu 21 toneladas. Em 17 de
maio, 28. Oito dias depois, rasgou 560 metros lineares de
plantação, cortando cinco linhas de cana para receber por
uma -é o critério legal. A rigor,
derrubou 2,8 km lineares.
O contracheque da empresa
Meia Lua imprime a marca da
jornada: 52,47 toneladas. Quase uma tonelada por quilo de
gente -ele pesava 56 kg. Hoje
diz ter 49 kg. Parece menos.
O cortador que arrancava
suspiros dos colegas incrédulos
definha na casa onde vive de favor em Engenheiro Coelho.
Na roça, não sentia dores.
Em 2006, a coluna "travou" e
ele não retornou ao canavial.
Aos 35 anos, sonha com o dia
de voltar ao trabalho em que se
tornou o herói dos amigos.
Por maior que seja a vontade,
ele desconfia de que não empunhará o facão novamente. Os
exames diagnosticaram problemas na coluna lombar, hérnia de esôfago e desequilíbrios
nos indicadores de urina.
Valdecir se queixa de dores
de cabeça, na barriga, no peito
(não fez avaliação cardíaca), no
saco escrotal, no ombro direito,
nos braços, joelhos e pernas; de
falta de força para levantar
uma garrafa d'água; de cansaço
após caminhar 800 metros; de
ouvir mal por um ouvido.
O lado esquerdo do tórax é
mais desenvolvido; com o braço esquerdo ele atirava a cana
na leira, o corredor aberto na
terra onde fica a cana colhida.
Segunda divisão
Ainda que o farrapo humano
que fala baixinho e sem fôlego
sobre seu infortúnio fosse criação de um magistral ator stanislavskiano, ultra-realista,
nem assim seria possível bolar
uma história com princípio,
meio e fim como a dele -os repórteres escarafuncharam o
caso com base em fartura de
documentos e depoimentos.
Valdecir começou a cortar
cana aos 13 anos. Empresas
premiavam seus feitos com bicicleta e aparelho de som.
Após "travar" em 2006, obteve auxílio-doença da Previdência. Na perícia de 5 de maio passado, no entanto, foi considerado apto para o trabalho. Sua
renda é zero.
Mora com uma filha de casamento anterior e a mulher, Helena. Ela ganha R$ 30 por faxina. Faz duas por semana.
O trabalho para o qual o INSS
não identifica "problema grave" para Valdecir exercer "não
se pode comparar ao de um escriturário", diz um executivo
de usina. Anunciam-se vagas
para escriturário com 30 a 40
horas de carga semanal. Em período idêntico, o cortador de
cana em SP trabalha, no papel,
44 horas, em seis dias.
De escriturários e cortadores
se exigem 35 anos de serviço
para se aposentar. A maioria
desses, contudo, é safrista: trabalha oito meses por ano na atividade. Não soma 12 meses de
contribuição.
O desempenho de alguns é
tão exuberante que os célebres
campeões cubanos das campanhas de corte de cana aqui pegariam segunda divisão. Em
1965, Fidel Castro condecorou
cinco deles, de marcas de 14 a
19,7 toneladas. Na Meia Lua,
ex-empregadora de Valdecir,
um cortador bateu 35 toneladas em 20 de junho. Os repórteres tentaram falar com a empresa, mas não encontraram
seus endereço e telefone.
Os campeões, como são chamados na lavoura os de melhor
performance, costumam ser
magros e fortes. Valdecir tem
1,65 m de altura.
Samuel Gomes, 38, é um dos
recordistas de Guariba. Mede
1,85 m. Barack Obama, 1,86 m.
O peso do senador americano é
estimado em 77 kg a 82 kg. Samuel, que tem 68 kg, conta ter
cortado neste ano 27 toneladas
em um dia na usina São Carlos.
Com tanta exigência física,
há nove homens (92%) por mulher na lavoura canavieira do
Brasil. Em nove culturas relevantes, os trabalhadores de menor média etária são os da cana,
35,5 anos -dados compilados
pelos pesquisadores Rodolfo
Hoffmann (Unicamp) e Fabíola C.R. Oliveira (USP).
Rotina
Ônibus das empresas apanham os cortadores em casa
entre 5h e 6h. No campo, a jornada inicia às 7h. Muitos "almoçam" antes de começar a colheita. Há direito a intervalos
de dez minutos, de manhã e à
tarde. Pelas 10h ou 11h, reserva-se uma hora para almoço
-poucos cumprem todo o tempo. O serviço termina às 15h ou
16h, mas há excessos. Os trabalhadores chegam às suas casas
entre as 17h e as 19h. Dormem
pelas 20h, 21h, para acordar entre as 3h30 e as 4h30.
Pesquisa de análise ergonômica em fase de conclusão, financiada pela Fapesp e coordenada pelos pesquisadores Rodolfo Vilela e Erivelton de Laat,
descreve os movimentos dos
cortadores.
Um deles, que colheu 11,5 toneladas, deu em um dia 3.792
golpes com o facão e fez 3.994
flexões de coluna. O facão pesa
600 gramas. Golpeia-se a cana
no pé, onde se concentra a sacarose. O cortador destro abraça
o feixe de cerca de dez canas
com o braço esquerdo (ou, vara
por vara, com a mão), curva-se
e golpeia com o braço direito.
Com o esquerdo, atira a cana na
leira, de onde a máquina carregadeira a leva.
Em um grupo, a freqüência
cardíaca média em repouso era
de 57,4 batimentos por minuto.
No trabalho, de 112, variação
exagerada, conforme os pesquisadores (a diferença deveria
se limitar a 35).
A atividade dos lavradores é
comparada à de maratonistas,
com repetição fatigante de movimentos. Maria Zeferina Baldaia, campeã da Maratona de
São Paulo em 2008, foi cortadora de cana no interior. "Uma
coisa tem muito a ver com a outra", confirma.
Sindicatos de empregados
pedem a redução da carga semanal para 40 horas, com dois
dias de descanso. Cristina Gonzaga, pesquisadora da Fundacentro, fundação de pesquisas
do Ministério do Trabalho, defende 30 horas, com cinco jornadas de seis horas por semana.
As empresas rejeitam as reivindicações.
É essa vida que Valdecir fantasia retomar. Ele se esconde
em casa. "As pessoas vêem a
gente na rua e falam que é vagabundo. Não vêem o que a gente
tem por dentro, o que a gente
sente."
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