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Salário no olhômetro
Cálculos complexos e fraudes no peso lesam trabalhadores analfabetos ou semi-alfabetizados
DOS ENVIADOS AO INTERIOR DE SP
O
trabalho na colheita da cana-de-açúcar vale quanto
pesa a cana cortada. Pelo menos deveria valer.
Documentos obtidos em
duas regiões de São Paulo indicam que uma desconfiança atávica dos trabalhadores não se
trata de paranóia: fraudes -ou
erros- provocam o pagamento
abaixo do previsto nos acordos
com as empresas.
A remuneração dos cortadores é uma equação complicada
mesmo para quem tem formação superior. Para a esmagadora maioria dos lavradores, é
ainda pior: na média, eles não
completaram nem a quarta série do ensino fundamental.
Anualmente, empresários e
sindicatos de assalariados definem quanto vale a tonelada colhida. As cifras variam de acordo com o tipo da cana.
Embora o pagamento seja
por peso, o desempenho dos
cortadores é aferido por distância. Usinas e fornecedores
de cana fixam o peso existente
por metro colhido. O peso depende de altura, espessura e
outras características da cana.
Multiplicam-se os metros
colhidos pelo peso de 1 metro.
O resultado é o peso da cana
cortada. Este é multiplicado
pelo valor da tonelada, determinando o ganho do dia.
Às vezes as contas não fecham. O trabalhador rural
Adelfo da Costa Machado cortou 132 metros lineares de cana
na quinta-feira 12 de junho.
A Indústria e Comércio Iracema Ltda., proprietária da
destilaria Iracema, de Itaí (SP),
pagou-lhe R$ 0,20 por metro. A
jornada deu direito a R$ 26,40.
Daquele tipo de cana, uma
tonelada valia R$ 2,7462.
Os demonstrativos da balança da Iracema revelam que na
roça onde Machado trabalhou
o rendimento por hectare foi
de 138 toneladas. O desembolso pela mão-de-obra seria de
R$ 379 por hectare (área pouco
menor que o campo de futebol
de dimensões máximas).
Com o espaçamento de 1,4
metro entre as fileiras de cana
(ruas, como se diz na lavoura
paulista), em um hectare há
7.140 metros lineares plantados. O lavrador tem de cortar
um metro de cinco ruas -5
metros, portanto- para que se
compute um metro na sua produção.
Cada cortador deveria receber R$ 0,2653 por metro -33%
a mais do que foi pago. Em vez
de R$ 26,40, Adelfo Machado
tinha direito a R$ 35,02 pelas
12,8 toneladas que abateu.
Deu para entender?
Imagine os cortadores.
Para fazer o cálculo, precisou-se cotejar a "planilha de
ponto de produção", preenchida no canavial por um fiscal da
empresa, com o contracheque
do empregado e um documento da firma assinalando as toneladas por hectare.
Foi o procurador do Trabalho José Fernando Maturana,
de Bauru, quem garimpou e
cruzou as informações.
Em um documento co-assinado com o procurador, um
funcionário da Iracema reconheceu que no "talhão 35" o
rendimento foi de 138 toneladas por hectare. Talhão é uma
subdivisão, de dimensões diversas, da área do canavial.
Na terça, outro executivo da
Iracema afirmou que estava errada a tabela da empresa. Por
engano, computaram-se 138
toneladas, mas "a produção por
hectare foi menor". Os trabalhadores teriam recebido corretamente.
Instrumento primitivo
Ao contrário do vendedor
consciente dos sapatos que
vendeu, o lavrador ignora as toneladas que colheu. Com a balança nas usinas, longe da roça,
ele só sabe depois. Na lavoura, o
terreno cortado é medido por
um instrumento primitivo: um
compasso de madeira, com
pontas de ferro e raio de 2 metros. O fiscal caminha girando o
compasso gigante.
"Enquanto as usinas utilizam modernos sistemas de monitoramento por GPS para projetar a colheita, os trabalhadores são remunerados no "olhômetro", acusa o Ministério Público do Trabalho.
Indagado sobre as toneladas
que corta e o valor do metro,
um canavieiro respondeu, em
Pederneiras, como os colegas:
"Não sei".
Nas greves de 1984 a 86, os
cortadores reivindicaram sem
sucesso o pagamento por metro, e não por peso. "O trabalhador sempre foi roubado", acusa
José de Fátima Soares, líder
das antigas mobilizações em
Guariba. Zé de Fátima aderiu
ao petismo e ao trotskismo e
trocou-os pelo malufismo. Hoje é do PPS.
O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cosmópolis acionou o Ministério do Trabalho
em 2005. Com base em anotações da performance em metros no canavial e da pesagem
nas usinas, descortinaram-se
diferenças entre cana colhida e
pesada. Em 4 de agosto daquele
ano, a empresa A.P. de Freitas
Neto fixou a relação de 30 kg
por metro. A cana se destinava
à usina São José. Na balança, o
metro pulou para 49 kg.
Em 1998, greve em Cosmópolis conquistou um sistema
pioneiro para conferir a produção: na usina de Cosmópolis, a
Ester, três funcionários do sindicato se revezam 24 horas na
sala de operação da balança.
Eles monitoram, caminhão
por caminhão, as toneladas que
os computadores da empresa
registram.
O controle da produção, com
sindicalistas conferindo o peso,
só existe lá. Nas grandes usinas,
o método é o do caminhão-campeão. Selecionam-se três
amostras do canavial, pesa-se e
define-se o valor do metro. O
cortador não testemunha a pesagem. Certas empresas nem
esse recurso empregam.
"Por que, no Brasil, só uma
usina faz o controle da produção?", pergunta Carlita da Costa, presidente do sindicato de
Cosmópolis. "Para mim, há
fraudes [em outras usinas]."
A União da Indústria de Cana-de-Açúcar afirma que há
um esforço com a Federação
dos Empregados Rurais Assalariados de SP para assegurar
"transparência e confiabilidade" e "apurar se aquilo que se
está produzindo se está recebendo". Patrões e empregados
não sabem de punição criminal
por manipulação de peso. A
usina São José foi procurada,
mas não se pronunciou. A Freitas Neto não foi encontrada.
O contador Fábio Urrea, contratador de mão-de-obra, disse
em Agudos que, "se o cara for
sério", é difícil fraudar o peso.
"E existe quem não seja sério
nesse meio?", ouviu dos repórteres. Urrea sorriu: "É duro falar. Complicado".
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