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Riqueza e senzala
Estado mais rico do país tem casos de trabalho escravo; procurador fala em "apartheid" nos canaviais
DOS ENVIADOS AO INTERIOR DE SP
Q
uando os fiscais do
Ministério do Trabalho e os procuradores do Ministério Público do
Trabalho partem para diligências nos canaviais, as chances
de encontrarem irregularidades equivalem às dos clientes
dos serviços de "pesque-pague"
disseminados pelo interior
paulista fisgarem tilápias sem
dificuldades: nos lagos, há profusão de cardumes; no campo,
as condições de trabalho dos
cortadores estão longe de cumprir plenamente a lei.
Mesmo sem os instrumentos
legais de investigação à disposição dos servidores públicos, os
repórteres não passaram por
lavoura onde não houvesse infrações.
Em Taiaçu, os trabalhadores
saíram para a roça de madrugada, em ônibus com luzes dianteiras e traseiras queimadas.
Em Serra Azul, não havia
água gelada, banheiros móveis,
área coberta para as refeições e
muitos canavieiros não usavam
alguns EPIs (equipamentos de
proteção individual).
Em Pederneiras, uma lavradora estava com luva cirúrgica
de borracha, não de couro com
reforço metálico, como determina a norma de segurança.
Ela pegou as luvas emprestadas com uma amiga que atuou
como mata-mosquito na campanha de combate à dengue.
Uma das luvas foi cortada pelo facão na véspera, ferindo um
dedo (o acidente não foi registrado, o que contraria a legislação). As botinas com bicos metálicos de boa parte dos peões
estavam destruídas.
Em Limeira, também não se
viram alguns EPIs. Idem em
Piracicaba e Charqueada. Em
Dois Córregos e Guariba, cortadores vivem em pardieiros
sem conforto e limpeza -falta
até papel higiênico.
Em Agudos, em uma rescisão
contratual, um casal apresentou os contracheques comprovando remuneração inferior a
um salário mínimo mensal.
Marido e mulher ainda deviam
mais de R$ 100 cada um ao
contratador de mão-de-obra,
que retinha documentos dos
funcionários havia três meses.
Hoje são proibidos e ficaram
mesmo para trás os caminhões
que transportavam os bóias-frias da cana em São Paulo.
Mas perduram frotas de ônibus
deteriorados e inseguros, sem
autorização para rodar.
As empresas são obrigadas a
fornecer de graça equipamentos de segurança. Às vezes não
fornecem e às vezes cobram.
São pequenos inconvenientes, se comparados aos episódios de "redução a condição
análoga à de escravo".
O crime é tipificado pelo Código Penal. Ocorre quando se
submete alguém a "trabalhos
forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho,
quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em
razão de dívida contraída com
o empregador ou preposto". A
pena é de multa e reclusão de
dois a oito anos, além de sanção
correspondente à violência.
Resgates e libertações
Desde 1995, quando entrou
em ação, o Grupo Especial de
Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho "resgatou" -é
o verbo oficialmente empregado- 30.036 trabalhadores no
Brasil. As indenizações somam
R$ 42 milhões. São raras as
condenações judiciais.
O recorde foi batido no ano
passado, com 5.999 "libertações", outra expressão adotada
pelo governo. Neste ano, até junho, 2.269 pessoas foram encontradas em condições análogas à de escravo.
Fiscais e procuradores se
transformaram em uma espécie de caçadores de escravos ao
contrário -não para confiná-los, mas para livrá-los da desgraça. Em São Paulo, é comum
eles exigirem que empresas paguem a viagem de volta de migrantes contratados em seus
Estados para o corte de cana.
A maioria -3.117- dos libertados em 2007 no país trabalhava no setor sucroalcooleiro,
como a Folha informou em fevereiro passado.
Em Brasilândia (MS), na usina e na fazenda da Companhia
Brasileira de Açúcar e Álcool,
831 empregados indígenas foram descobertos em situação
qualificada como degradante.
Neste ano, 55 funcionários
de outra usina da CBAA foram
descritos pelo Ministério do
Trabalho como vítimas de servidão por dívida, o que configura trabalho escravo.
Ao contrário da maioria das
autuações, concentradas nas
regiões de expansão da fronteira agrícola no Norte e no Centro-Oeste do Brasil, esta aconteceu no Estado de São Paulo,
em Icém.
A companhia, do grupo J.
Pessoa, nega responsabilidade
por problemas. Em seu site,
afirma que "busca garantir sustentabilidade na produção e relações responsáveis no crescimento, visando sempre a melhoria e a qualidade de vida dos
seus colaboradores e de seus
familiares".
Empresas do grupo foram
excluídas do Pacto Nacional
pela Erradicação do Trabalho
Escravo, um programa de organizações que se comprometem
a não aceitar esse crime em sua
cadeia produtiva.
O procurador do Trabalho
Luís Henrique Rafael destacou
em ação civil pública o que considera abismo entre os componentes contemporâneos e arcaicos do negócio da cana e
seus derivados: "A tecnologia
de ponta que se observa nas
usinas contrasta com as "senzalas" nos canaviais, explicitando
bem o verdadeiro apartheid,
fruto da inescrupulosa equação
de distribuição das rendas geradas pelo tal "petróleo verde'".
A Organização Internacional
do Trabalho mantém no Brasil
o Projeto de Combate ao Trabalho Escravo.
O procurador Mário Antônio
Gomes coordena "inquérito-mãe" sobre o que chama de degradação do trabalho nos canaviais de São Paulo. Para ele, "o
nível de educação mais baixo
[dos cortadores] facilita a exploração".
O combate ao trabalho degradante é limitado pela escassez de recursos. Na região de
Ribeirão Preto, há dois procuradores para acompanhar 39
usinas. É pouco, mas, graças
(também) às ações de fiscalização, hoje está quase erradicado
um fenômeno do passado, o
trabalho infanto-juvenil no
corte da cana no Estado.
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