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Livros
A infância de um chefe
Em "O Jovem Stálin", que sai nesta semana, Simon Montefiore mostra os anos de formação do futuro líder soviético, marcados pelo domínio do grego clássico e o interesse por história e literatura
RUY FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Simon Sebag Montefiore que, com "A Corte do Czar Vermelho"
[Cia. das Letras], espécie de análise histórico-etnológica de Stálin, havia
provocado uma pequena revolução na "stalinologia" e, em
certa medida, na sovietologia
em geral, lança agora este "Jovem Stálin", que se ocupa da vida do "pai dos povos" até a sua
participação no primeiro governo bolchevique, em novembro de 1917.
Como o livro anterior, este é
o resultado de um longo trabalho: quase dez anos de investigação em 23 cidades e nove países, incluindo pesquisas em arquivos recém-abertos em Moscou e nas cidades georgianas de
Tbilisi e Batumi, além da utilização de memórias, em boa
parte inéditas, de contemporâneos mais ou menos obscuros.
A primeira reação diante de
tal tipo de trabalho é de ceticismo. Esse mergulho na vida do
tirano poderia levar a resultados históricos de alguma relevância? Na realidade, o livro é
importante.
Sem dúvida, pode-se dizer
que ele não inova propriamente, "apenas" radicaliza o que já
fora revelado pelo livro anterior e por textos de outros autores. Só que essa radicalização
vai longe. Há nele três elementos, de interesse crescente.
Em primeiro lugar, para
além do que já se sabia por
meio de "A Corte do Czar Vermelho", o leitor descobre um
Stálin com qualidades intelectuais-artísticas bem superiores
às que poderia sugerir o retrato
que dele faz Trótski.
O jovem Stálin não só canta
bem e é um grande leitor, principalmente de literatura e história, mas é um poeta georgiano de qualidade apreciável (os
poemas em tradução, que o volume traz, parecem confirmar
esse julgamento).
O Stálin poeta foi incluído
em antologias da poesia georgiana do início do século e, segundo Montefiore, ele é um
"clássico georgiano menor". O
futuro "pai dos povos" "foi admirado na Geórgia como poeta
antes de ser conhecido como
revolucionário".
Montefiore diz também, "en
passant", que Stálin lia Platão
no original grego (língua que
deve ter aprendido no seminário). Ele não foi um indivíduo
inculto; mesmo o epíteto de semiculto talvez seja insuficiente. Stálin foi um intelectual de
estilo provinciano (não conseguiu dominar as línguas modernas fora o russo, tinha gostos muito convencionais em
arte etc.).
Porém, se Stálin foi mais intelectual do que se supunha,
ele também foi mais bandido...
Suas atividades de "expropriador" são conhecidas, principalmente o famoso ataque às "carruagens pagadoras" do Banco
do Estado em Tiflis, em junho
de 1907, fato noticiado com
destaque pela imprensa mundial da época.
O assalto de Tiflis, planejado
por Stálin, mas do qual ele provavelmente não participou de
forma direta, foi executada por
um grupo de homens e mulheres dirigido por Kamo, um bandido sanguinário e psicopata,
totalmente fiel a Stálin. Segundo os arquivos da polícia secreta czarista, nele morreram
mais ou menos 40 pessoas.
Stálin se comportava como
um verdadeiro chefe de bando,
mesmo se só guardasse para si
a glória e o poder (que sempre
foram seus maiores objetivos):
o dinheiro ia para os cofres da
organização bolchevista.
Stálin planejou e dirigiu outras ações violentas, incluindo
talvez um ato de pirataria contra um navio no mar Negro, arrancou dinheiro de comerciantes e industriais, sob ameaça de
morte ou de incêndio de propriedades, e mandou matar espiões (segundo alguns, liqüidou também gente que simplesmente não lhe inspirava confiança). Assim, nas palavras
do autor, "Stálin era uma rara
combinação: ao mesmo tempo
intelectual e assassino".
É por causa dessa dupla condição -esse é o ponto importante- que ele caiu nas boas
graças de Lênin. Também aqui
os fatos, em grande parte pelo
menos, já eram conhecidos,
mas Montefiore mostra bem o
quanto Lênin apreciava Stálin,
e como iria promover sua ascensão na hierarquia, depois da
cisão formal do partido bolchevique (1912).
"Esse é exatamente o tipo de
pessoa de que necessitamos",
diz Lênin sobre Stálin, nos anos
1910, respondendo às objeções
de um menchevique. Numa
carta a Gorki -esta bem conhecida-, Lênin se refere a Stálin
como o seu "maravilhoso georgiano". Às vésperas do quinto
Congresso da Social-Democracia russa, em Londres, em
abril-maio de 1907, Lênin encontra Stálin em Berlim.
Lá, eles conversam sobre a
iminente operação de Tiflis (!) e
sobre os meios para remeter o
dinheiro. No congresso, onde,
por proposta dos mencheviques, as expropriações são
proibidas pelo partido, sob pena de expulsão, Lênin afirma
não conhecer Stálin.
Em 1912, junto com Zinoviev,
Lênin propõe que Stálin seja
cooptado para o Comitê Central bolchevique. E, em 1922,
assegura, com Kamenev, a nomeação de Stálin como secretário-geral do Comitê Central.
Se as coisas se passaram assim, é preciso concluir -não,
como pretende o autor, que o
stalinismo é simples continuação do leninismo: as diferenças
entre os dois não desaparecem
apesar de tudo isso- que o leninismo "preparou a cama" para
o stalinismo.
Meios e fins
Lênin sempre deixou claro
que não tinha maiores problemas com o uso dos meios, desde que os objetivos fossem revolucionários. E, assim, não hesitou em apelar para o banditismo como força auxiliar. E, até
mais do que isso, a serviço do
grupo e, depois, do partido bolchevique.
Quando se tenta idealizar "o
último combate de Lênin" -a
ruptura com Stálin, em 1923, e
a tentativa de afastá-lo da Secretaria Geral-, é impossível
não comentar: pois fora ele
mesmo, Lênin, que introduzira
o lobo (não propriamente entre
"cordeiros", mas...).
A refletir. Quando jovem, Fidel Castro foi uma espécie de
gângster, e a última biografia de
Mao Tse-tung revela um personagem que tem muito a ver
com o banditismo. Que o stalinismo tenha certa afinidade
com o gangsterismo não é muito surpreendente nem representa, a rigor, uma informação
nova, nos dias de hoje.
Mas o que, sim, deveria ser
matéria de reflexão é o uso que
o leninismo fez das práticas do
gangsterismo. Essa atitude não
foi acidental. Ela estava enraizada nessa mistura de neojacobinismo, neonarodnikismo e
fria racionalidade capitalista,
que é o leninismo. Os resultados, conhecemos.
Infelizmente, como os stalinistas outrora, os nossos neoleninistas preferem não enxergar
o que é desagradável. A confusão teórica é o preço dessa política de avestruz.
RUY FAUSTO é filósofo, professor emérito da
USP e lecionou na Universidade de Paris 8. É autor de "Marx - Lógica e Política" (ed. 34).
O JOVEM STÁLIN
Autor: Simon Sebag Montefiore
Tradução: Pedro Maia Soares
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/
xx/11/ 3707-3500)
Quanto: R$ 56 (536 págs.)
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