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CRISE EM CUBA
Para Fidel, "a lógica indicaria que [um confronto com os EUA] não deveria acontecer, mas é preciso lembrar que não existe muita lógica"
"Há uma situação de risco de guerra agora"
Mauricio Lima - 25.mai.2003/France Presse
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Simpatizantes do presidente da Argentina, Néstor Kirchner, seguram faixa com as imagens de Lula, Fidel e Chávez, em Buenos Aires |
DO "CLARÍN"
Leia a seguir a continuação da
entrevista do ditador Fidel Castro.
Pergunta - Quando o sr. fala em
um representante dos EUA enviado
com a missão específica de provocar incidentes, o sr. está falando de
James Cason, chefe da seção de interesses dos EUA em Havana?
Fidel Castro - O último. Que chegou em setembro do ano passado,
mais ou menos. Era incrível. Ele
percorria a ilha toda devido à necessidade de monitorar os que
emigraram e os que eles enviaram
de volta. E não existe uma única
violação cometida contra os cubanos que eles mandaram de volta, nenhum tipo de represália. A
maioria dos que tentam ir aos
EUA como clandestinos o faz porque, por meios normais, eles não
lhes concedem vistos, muitas vezes por terem antecedentes ou potencial criminosos. E aqui se uniu
essa coisa. No dia 14 de março,
quando a decisão [dos sequestros] foi tomada, esse homem já
vinha percorrendo a ilha, organizando todos esses grupos abertamente, levando de contrabando
malas cheias de rádios e coisas para sua emissora, criando as chamadas bibliotecas independentes,
que incluíam dois ou três autores
bons e depois veneno puro, da
pior literatura e da pior propaganda. É como se nós disséssemos
à nossa embaixada: "Organize bibliotecas na Argentina, no Brasil
ou em qualquer outro lugar".
Bem, o homem fez algumas declarações insuportáveis. Ele as fez
em 24 de fevereiro, se não me engano, numa recepção. Eram declarações de dirigente político.
No dia 6 de março, fui falar
diante da Assembléia Nacional e
respondi ao indivíduo, que não
imaginasse que fôssemos tolerar
isso, que, se quisessem levar a embaixada ou pôr fim ao acordo migratório, nada disso seria preocupante para nós. Foi colocada uma
coisa: que isso de ir monitorar era
uma concessão, não prevista no
acordo. Havia normas para eles e
para nós, mas eles não pediam autorização para se deslocar. Então
dissemos: "É preciso pedir autorização com três dias de antecedência, e será preciso esperar a autorização para se deslocar".
Ele emprestou a sede para uma
reunião do comando desses grupos às vezes chamados de dissidentes. Temos todas as provas do
dinheiro que recebem, como o recebem -porque também entre
esses dissidentes, como é natural,
havia alguns que tinham sido revolucionários antes. Mas, com todas as provas, escritas e de todo tipo, quero que se saiba que a ação
foi limitada. Então muitos amigos
do norte diziam: "Escutem aí, não
expulsem os americanos". Nós
não íamos expulsá-los, porque
não expulsamos ninguém em todos esses anos, nem da ONU nem
de Washington.
Pergunta - Mas a decisão de não
expulsar os supostos instigadores
estrangeiros não parece ser proporcional à de executar cidadãos
cubanos ou condená-los a longas
penas de prisão.
Fidel - Existe confusão a esse respeito. Nenhum dos cidadãos cubanos foi condenado à morte
nem a 30 anos de prisão. Alguns
foram condenados a cinco ou seis
anos. Os demais, de acordo com
sua responsabilidade. A pena de
morte foi dada contra alguns indivíduos que já não eram dissidentes, mas de potencial criminoso.
No dia 19 de março, no mesmo
dia em que explodiu a guerra no
Iraque, uma hora antes de começar a guerra, um avião cubano
que trazia passageiros da ilha de
Juventud, com 40 passageiros a
bordo, foi sequestrado por indivíduos armados com facas. Ao chegar ali [aos EUA] -era a primeira
vez que isso acontecia-, prenderam algumas pessoas, deram residência a seus cúmplices e, quatro
dias mais tarde, um juiz decidiu
que eles tinham direito à liberdade condicional -pessoas que fizeram o mesmo que aqueles que
provocaram a catástrofe de 11 de
setembro. Digo em potencial porque eram pessoas com antecedentes comuns. Bem, as pessoas
que deixam o país ilegalmente o
fazem porque nunca mais vão
lhes dar vistos. Com certeza não
dão visto a pessoas que tenham
antecedentes criminais comuns.
No dia 31 de março, em um segundo avião vindo do mesmo lugar, com 46 passageiros, alguém
carregando uma suposta granada
deu ordens de desviar o avião. O
piloto retornou e aterrissou. Houve negociações. Havia algumas
pessoas nos EUA que compreendiam que isso era uma loucura e
que não estavam de acordo. A situação foi discutida. Eles disseram, com muita energia, que iam
castigar, até nos pediram que divulgássemos o caso. Fizemos tudo isso. E eles próprios, alguns deles, não queriam que o avião aterrissasse na Flórida. O que fizemos,
então? Conseguiram fazer o avião
descer e se abastecer de combustível, mas, mesmo assim, o aterrissaram em Key West [Flórida], e lá
são as autoridades correspondentes que decidem se haverá investigação ou não. Então, cada vez que
roubam um avião, os sequestradores devem sair impunes? Na
Flórida existe um Estado semi-independente, e lá se faz o que eles
bem entendem, e eles têm controle total sobre a polícia, as autoridades, os juízes, os fiscais. A onda
de assaltos e sequestros de aviões
é inadmissível.
Então o outro foi um barco de
passageiros em águas interiores
da baía, uma embarcação que pode levar até cem passageiros, mas
nesse momento levava 40. Eles
também foram sequestrados com
facas e pistolas. O único incidente
desse tipo que já tinha acontecido
em Havana foi em 5 de agosto de
1994. Não sei se vocês conhecem a
história, como a situação foi resolvida sem Exército, sem polícia e
sem um único tiro disparado. Eles
tinham sido enganados por aquela rádio (Rádio Martí, com transmissões dos EUA para o território
cubano); disseram a eles que um
grupo de barcos vinha buscá-los.
Quando os barcos não vieram,
criaram um tumulto. Foi o momento mais difícil daquele período especial.
Pergunta - Que foi seguido pela
onda migratória.
Fidel - Porque existe uma lei
americana chamada Lei de Ajuste
Cubano, que se aplica a um único
país do mundo, um país situado
muito perto dos EUA, que afirma
que é direito de todo cubano que
chegar aos EUA como ilegal receber residência no país. Imagine o
que fariam os mexicanos se lhes
fosse oferecida uma lei de ajuste.
Nós não a pedimos, porque a chamamos de lei assassina.
Centenas de mexicanos morrem todos os anos na fronteira
dos EUA com o México. Não se
fala disso. Falou-se terrivelmente
de Cuba porque precisam aplicar
uma sentença. Compreendo e
dou razão à imensa maioria daqueles que se opõem à pena de
morte, porque ela nos desagrada
muito. E se nós, que fizemos uma
moratória de quase três anos na
aplicação da pena de morte, fomos obrigados a rompê-la, é porque eles, com o que fizeram, que
foi deliberado, já tinham pensado
nisso, e sabíamos disso. Queriam
criar uma espécie de onda migratória que servisse de argumento
para dizer que a segurança dos
EUA estava correndo risco. Essa
palavra eles utilizam para tudo. Se
a Argentina produz carne demais
e ameaça reduzir o preço internacional, pode ser um perigo para a
segurança dos EUA.
A idéia era que se produzisse
um êxodo. Que nós nos irritássemos e disséssemos: "Que saiam
todos, então". Agora, você não
pode permitir que comece uma
onda, porque ela pode crescer
muito. Imagine, basta que um sujeito leve uma granada no bolso...
Pergunta - Existem dois adversários -os EUA e o Estado da Flórida?
Fidel - É esse o problema. Na
Flórida, pensam que são donos
totais, mas não são, porque algumas prerrogativas têm de ser
compartilhadas. Apesar disso,
costumam fazer o que bem entendem, porque a administração
Bush deve a eles sua vitória e por
isso lhes é grata e reconhecida.
Então são essas as coisas que se
acumularam. As primeiras prisões foram feitas em 18 de março,
e o caso do barco aconteceu em 1º
de abril. Chegaram inclusive a
ameaçar que, se não lhes fosse dada outra embarcação, começariam a atirar reféns na água. Bem,
em situações como essa existe um
exemplo e um precedente. O que
nós fazíamos aos que roubavam
aviões norte-americanos era castigá-los, devolver o avião no ato e
dar atendimento aos passageiros.
Porque eles inventaram essa coisa
de sequestro, mas depois virou
um bumerangue, porque há muita gente desequilibrada. Os pilotos normalmente têm instruções
de não correr nenhum risco.
Não haveria necessidade de fuzilar ninguém se os sequestradores os devolvessem, como nós devolvemos e resolvemos o problema, de tal modo que não voltou a
acontecer por 20 anos, com desequilibrados e tudo. Era evidente
que isso o havia cortado pela raiz.
Nesse castigo, o Conselho de Estado não exerceu clemência. E esses
crimes são castigados com a pena
capital há muito tempo. Os dissidentes inclusive cometem atos de
traição. Digo a eles que esses atos
serão castigados. As sanções podem ser piores. Podem ser prisão
perpétua ou pena capital. E algumas dessas leis não foram usadas.
Por quê? Porque não havia interesse nisso, não havia uma situação de perigo de guerra como a
que temos agora.
Pergunta - Há uma guerra agora?
Fidel - O perigo de uma onda de
sequestros de embarcações. Foi
preciso fazer uma declaração forte, uma mensagem contundente:
"E aqueles que fizerem o mesmo
serão enviados a julgamento sumário, e o Conselho de Estado
não exercerá clemência". Porque
agora eles inclusive colocam em
risco os passageiros. De quem é a
responsabilidade por esses mortos? Nossa ou daqueles que estão
provocando isso, lá nos EUA?
Porque já não é o caso de discutir
se a culpa é de
quem comete o
delito ou de todos
aqueles que nos
condenaram sem
piedade porque tivemos de aplicar
uma medida para
defender o país.
Pergunta - Uma
guerra é algo diferente de uma polêmica em torno de
sanções. Há o risco
de uma invasão?
Fidel - Quanto
uma guerra em
Cuba custaria aos
EUA? Não seria
menos de milhões, porque com
meu país, que já
tem uma cultura,
a guerra não terminaria em três
dias, nem em dez,
nem em cem. Já
estudamos todas
as invasões que os
EUA fizeram, suas
técnicas e como
nos defender. É
uma guerra que
não queremos,
uma vitória que
não desejamos,
mas, desde já, não
entregaremos o
país de graça. Falo
com franqueza.
Pergunta - Desde
a crise dos mísseis,
em 1962, uma ação
militar dos EUA
contra Cuba foi se
tornando uma possibilidade cada vez
mais remota. Hoje,
nesse esquema novo, tornou-se mais
possível?
Fidel - Sim, esse
erro se tornou
mais possível. A
lógica indicaria
que ela não deveria acontecer. Mas
precisamos lembrar que não existe muita lógica.
Naquela crise houve um risco
iminente por um tempo determinado, um certo número de dias.
Agora o risco é prolongado.
Pergunta - Parece que já chegou
a hora de pensar em uma transição
para Cuba. Como o sr. a imagina?
Fidel - E transição para onde?
Me diga para onde, porque, se
existe um modelo melhor do que
o nosso, juro que eu faria todo o
possível, começaria outra vez a lutar outros 50 anos.
Pergunta - Como o sr. imagina o
futuro de Cuba quando Fidel Castro
já não estiver mais em cena?
Fidel - Essa pergunta eu também
faço a mim mesmo. O erro é achar
que Fidel Castro é tudo. Porque
todos dizem: ""Fidel faz isso, Fidel
faz aquilo". Por exemplo, posso
me atribuir -com constrangimento, porque não quero exaltar
coisas pessoais- a idéia de como
resolver o problema do poder
quando se deu o golpe de Estado
de 10 de março de 1952. Não tínhamos nem um centavo, nem
uma arma, e aquilo era uma força
tremenda. Além disso, ninguém
nos dava muita bola. Porque o governo derrubado tinha muitos recursos. E tivemos reveses muito
fortes. Não há muito mérito onde
muita coisa acontece como fruto
do acaso. Porque vocês podem
me dizer: ""Por que o senhor está
aí?", e eu direi: é uma questão de
sorte, de acaso, entre outras coisas. Mas existem algumas idéias.
Como resolver esse problema, isso era algo bem difícil. E também
houve grandes riscos pessoais.
Mas foi possível resolver esse problema. Depois vieram outros, como os do embargo. Depois chegou o chamado "período especial", que foi um bloqueio dentro
de um bloqueio já rigoroso. E ninguém dava um centavo pela sobrevivência da revolução.
Se as informações reais e verídicas fossem bem conhecidas, poderiam nos fazer todas as críticas
que quisessem. Mas poderiam
compreender de fato que, se fôssemos as pessoas que pintam, não
teríamos o apoio do povo, que
tem sido chave em níveis que
acredito serem sem precedentes.
E não com base no fanatismo,
porque não somos chauvinistas,
não somos fundamentalistas
-pelo contrário, vimos procurando educar nossa população num
conceito de solidariedade interna
e externa.
As pessoas precisam ter um
ideal. Às vezes, em
vez de ideais, o
que dão às pessoas
é fanatismo, pobreza, racismo. E
nosso país não se
mantém assim
-ele se mantém
sobre idéias. Não
fosse assim, não
teríamos podido
lutar contra esse
monstro que nos
teria corroído
com seus meios de
divulgação, seu
embargo, sua exibição de riqueza.
Então vou dizer
apenas mais isto:
se nos conhecessem melhor, poderiam nos fazer
todas as críticas
que quisessem,
porque uma pessoa tem o direito
de opinar. Mas o
problema é que o
que se conhece de
Cuba vem de uma
informação que
foi deformada durante muito tempo. O senhor me
perguntava sobre
uma mudança,
mas eu lhe perguntava para onde. Em direção ao
que vemos no
mundo? Renunciando ao que temos? Não quero
enumerar as coisas que temos devido a razões éticas profundas:
confiança. Sabe
que nunca se diz
uma mentira?
Porque em nosso país as pessoas
conhecem as regras. Escrevem-se
livros por aí dizendo que em Cuba
há tortura e outras 20 coisas. Não
obstante dissemos: ""Damos tudo,
o pouco que temos, a quem possa
demonstrar que tenha ocorrido
uma tortura em nosso país". Livros desse tipo se semearam aos
montes, mas nós resistimos. A revolução possui uma couraça para
sua defesa.
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