São Paulo, domingo, 01 de dezembro de 2002

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ARTIGOS

Quênia é novo passo no "choque de civilizações"

ROBERT FISK
DO "THE INDEPENDENT"

Era inevitável. Era o pesadelo das autoridades israelenses: um ataque da Al Qaeda contra o Estado judaico.
A única coisa que essas autoridades não imaginaram, nem mesmo depois do atentado de Bali, é que a Al Qaeda pudesse golpear Israel no exterior.
É claro que havia vantagens políticas para os israelenses: a culpa podia ser atribuída aos palestinos, mesmo que eles não tivessem nada a ver com o atentado suicida contra o hotel Paradise.
Como de costume, a Al Qaeda se mostrou indiferente com relação aos mortos que não faziam parte de seu alvo. Assim como os quenianos foram a maioria dos mortos no atentado da Al Qaeda contra a embaixada americana em Nairóbi, quatro anos atrás, eles também formaram a maioria das vítimas em Mombaça, na quinta-feira.
Crianças morreram como se elas fossem o alvo. Mas o ataque comprovou, mais uma vez, que a rede de Osama bin Laden possui o que os americanos gostam de chamar de "alcance global". Os homens de Bin Laden são capazes de atacar em Bali, Cingapura, Afeganistão, Kuait, sobre o oceano Atlântico, na Arábia Saudita, no Iêmen, em Nova York, nos arredores de Washington e num campo da Pensilvânia.
O suposto "Exército da Palestina", que teria reivindicado os ataques no Quênia, com certeza não passa de mito, embora essa reivindicação de responsabilidade será utilizada por Israel.
O ataque desferido por esse "exército" foi em grande medida um fracasso. É importante tomar nota disso quando se calcula os resultados do mais recente ataque da Al Qaeda.
Nenhum dos dois mísseis atingiu o avião de carreira israelense. Os militantes suicidas com certeza esperavam matar um número muito maior de pessoas. A intenção era que 28 de novembro fosse o 11 de setembro de Israel, com uma lista de 300 ou 400 mortos. No final, apenas três israelenses morreram.
Se procurarmos uma assinatura, fica claro que a Al Qaeda deixou suas iniciais gravadas nas mortes de quinta-feira. Militantes suicidas; ataques simultâneos; Quênia; um resort turístico. Usar o termo "marca registrada" já virou clichê, mas o fato é que os ataques em Mombaça traziam "Al Qaeda" gravados na testa, por assim dizer.
Dois meses atrás, altos funcionários da inteligência militar israelense expressavam seu receio de que o próximo alvo da Al Qaeda pudesse ser Israel. Eles falavam nos altos edifícios de Tel Aviv, em plataformas de mísseis nucleares no deserto de Negev -falavam disso em voz baixa, é claro, porque o mundo não deve, supostamente, comentar a capacidade nuclear israelense-, mas o que temiam, com razão, é que Bin Laden fosse tentar colocar Israel no mesmo quadro que os Estados Unidos.
E ele o fez. Pois, seja o que for que a Al Qaeda tenha feito na quinta-feira passada, ela colocou Israel bem ao lado dos Estados Unidos.
Desde o 11 de setembro, o primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon, vinha dizendo que Israel está ao lado do presidente George W. Bush em sua "guerra ao terror". Graças à política americana unilateral e terrivelmente parcial no Oriente Médio, o conflito tem dado a impressão de que Sharon e Bush compartilham as mesmas metas.
Agora o mundo terá de reconhecer que Sharon tem uma razão para combater a Al Qaeda.
Será que há palestinos nas fileiras das legiões de Bin Laden? Nunca conheci nenhum -e já estive com dezenas de seus homens no Sudão e no Afeganistão. Entretanto, pelo fato de atacar israelenses, a Al Qaeda vestiu o manto da Intifada.
Se um militante suicida palestino pode matar 11 israelenses em Jerusalém, e um esquadrão suicida da Al Qaeda pode matar três israelenses em Mombaça, qual é a diferença?
No futuro, qualquer investida israelense na Cisjordânia e na faixa de Gaza ocupadas poderá ser descrita como parte da caçada aos homens de Bin Laden.
Um ataque aéreo israelense, não importa quantas crianças venha a matar, poderá ser retratado como não sendo diferente dos ataques americanos contra os povoados afegãos.
Não pensemos por um instante sequer que essa idéia não tenha passado pela cabeça da Al Qaeda. Numa organização para a qual a idéia de "danos colaterais" -termo que já soa obsceno o suficiente quando dito por nós- não quer dizer nada, a reintensificação do poder de fogo israelense é inevitável. Quando mais os árabes se derem conta da brutalidade da vingança exercida por seus inimigos, mais poderoso será o alcance da Al Qaeda.
O ataque da quinta-feira -mínimo, em termos de baixas israelenses, quando comparado ao número de mortos em atentados suicidas palestinos recentes- não muda isso.
Os líderes israelenses vão competir entre eles pelo direito de revidar. A administração Bush, depois de 11 de setembro, não vai recomendar moderação.
Então, o que tudo isso nos diz sobre Bin Laden?
Mostra que seus homens, mais uma vez, podem atacar seus inimigos quando e onde quiserem.
Mombaça e um hotel de propriedade israelense deveriam ter sido considerados sob óbvio risco de segurança -aliás, a coragem dos turistas israelenses é espantosa.
Foi apenas um pouco ao norte, seguindo por essa mesma costa -em Mogadício- que os combatentes de Bin Laden enfrentaram os americanos pela primeira vez, como ele próprio me contou em 1997.
O atentado contra a embaixada americana em Nairóbi, quatro anos atrás, juntamente com o ataque à embaixada americana em Dar-es-Salam, já deveria ter comprovado a força que a Al Qaeda tem na África.
E o "texto" do ataque continua. A Al Qaeda atacou um resort turístico em Bali. Ela atacou a cidade turística de Mombaça. Ela tentou afundar o navio americano USS Cole, em Aden, com o pequeno barco de um militante suicida. Em outubro, ela tentou afundar o petroleiro francês Limburg com um método idêntico. Ela destruiu duas embaixadas americanas na África com bombas. Atacou duas torres do World Trade Center. Na quinta-feira, fez o atentado contra o hotel de Mombaça ser acompanhado de uma tentativa de ataque com mísseis contra um avião de turistas israelenses.
Qual será o próximo alvo? Bem, já ouvimos a lista de alvos de Bin Laden: primeiro o Reino Unido, depois a França, a Itália e o Canadá.
Que ninguém imagine por um instante sequer que os estrategistas da Al Qaeda não analisaram os alvos disponíveis. Eles já olharam tudo, como fizeram os homens da GIA argelina, mais de quatro anos atrás, quando planejaram arremeter um avião sequestrado da Air France contra a torre Eiffel.
Podemos estar certos de que eles já analisaram a barreira do Tâmisa, o Eurostar e todos os outros símbolos vulneráveis de nossa sociedade. Sim, já o fizeram porque querem que a Europa forme uma aliança com os Estados Unidos e Israel.
O patético "choque de civilizações" previsto no livro homônimo de Samuel Huntington é tão importante para os seguidores de Bin Laden quanto é para os fundamentalistas cristãos americanos de direita que fazem a afirmação revoltante de que o profeta Muhammad era pedófilo.
O que aconteceu na quinta-feira foi mais um passo nessa direção.


Tradução de Clara Allain


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