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DEMOCRACIA ÁRABE
Tese dos EUA de que queda de Saddam estimularia democracia no Oriente Médio não convence
Intelectuais árabes não crêem em reformas
JAVIER VALENZUELA
DO "EL PAÍS", NO CAIRO
Naguib Mahfouz foi hospitalizado duas vezes nas últimas semanas. Aos 92 anos de idade e
sem ter se recuperado completamente das punhaladas recebidas
de alguns fundamentalistas islâmicos, o único árabe laureado
com o Prêmio Nobel de Literatura não consegue superar uma
gripe forte. Mesmo assim, Mahfouz fez chegar uma mensagem
ao jornal "Al Ahram", do Cairo,
sobre a guerra que os EUA preparam contra o Iraque.
"Sou contra esta guerra. Sou
contra Saddam", diz. "A guerra
vai gerar uma quantidade enorme de destruição, não apenas no
Iraque, mas em todo o mundo
árabe. Ao mesmo tempo, o regime de Saddam é a quintessência
de tudo o que existe de negativo
nas políticas árabes: opressor,
autocrático e irracional."
A mensagem expressa o que
pensa hoje a maioria dos intelectuais, artistas, profissionais liberais, universitários e estudantes
que, do Marrocos ao Qatar, sonha com um mundo árabe laico,
democrático e que respeite os direitos humanos.
Não tendo conseguido convencer esses setores do suposto
perigo representado por Saddam, Washington agora tenta
seduzi-los com a idéia de que a
guerra será o ponto de partida
para uma "remodelação profunda" que levará a liberdade ao
Oriente Médio. "Isso é algo de
que precisamos muito", diz o cineasta egípcio Youssef Chahine,
"mas não me parece que atacar o
Iraque seja o instrumento adequado para consegui-lo."
"A onda de democratização
que transformou o modo de governar na maioria dos países da
América Latina e Ásia oriental
nos anos 1980 e os da Europa
central e boa parte da Ásia central nos anos 1990 apenas tocou
os países árabes de raspão",
constata o relatório 2002 da
ONU sobre a região. Dificilmente qualquer um dos 22 países da
Liga Árabe poderia ser descrito
como plenamente democrático.
Apesar disso, o discurso reformista de Washington não desperta entusiasmo entre seus possíveis beneficiários, embora provoque inquietude entre os governantes árabes. É significativo
que esses democratas árabes se
queixem de que os regimes autoritários aliados de Washington
não lhes permitem manifestar-se contra a guerra.
"O problema dos EUA", diz
Diaa Rachwan, pesquisador do
Centro de Estudos Políticos e
Sociais de Al Ahram, "é sua falta
de credibilidade. As razões são
evidentes: seu apoio a Israel, sua
indiferença diante do sofrimento palestino, sua cumplicidade
com tantos regimes árabes autoritários e, agora, com Bush, sua
sede de vingança, de petróleo e
de exercer um papel imperial."
O escritor palestino residente
nos EUA Edward Said é um dos
30 intelectuais árabes que assinaram um manifesto que descreve Saddam como "um pesadelo para o Iraque e o mundo
árabe". Em artigo, Said recorda
que os EUA declararam que vão
fazer chover até 500 mísseis por
dia sobre o Iraque e pergunta:
"Que espécie de Deus diria que
isso vai levar democracia e liberdade não apenas para a população do Iraque, mas para o resto
do Oriente Médio?".
Saaedin Ibrahim é uma exceção no ceticismo generalizado.
Professor da Universidade Americana do Cairo, Ibrahim, que
tem nacionalidade dupla
-egípcia e americana- , se encontra em liberdade enquanto
aguarda julgamento, depois de
passar meses na prisão.
Seu crime foi ter denunciado a
fraude nas eleições egípcias, a
discriminação sofrida pela minoria cristã copta e a possibilidade de que Mubarak esteja preparando seu filho Gamal para ser
seu sucessor. "Estou convencido
de que os EUA vão tentar seriamente instalar a democracia no
Oriente Médio, e isso a partir do
exemplo do Iraque", disse ao
jornal "El País". "Mas ninguém
pode prever se a tentativa dará
certo ou não."
Democratizar o universo árabe e muçulmano tem outro inconveniente, pelo menos no curto prazo, segundo Diaa Rachwan. "Cada vez que há eleições
mais ou menos livres em um de
nossos países", diz, "os islâmicos
obtêm resultados muito bons."
O islamismo se nutre da falta
de democracia, das terríveis desigualdades sociais, da corrupção dos regimes e do ressentimento diante da indiferença
americana com relação ao sofrimento dos palestinos. No entanto, se há democracia, são os islâmicos que saem ganhando.
"Estarão os EUA e o Ocidente
dispostos a suportar essas vitórias islâmicas, aceitá-las como
doença infantil da democracia
no mundo árabe e muçulmano?", indaga Rachwan.
Tradução de Clara Allain
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