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BAGDÁ NA MIRA
De acordo com Thomas Carothers, especialista em promoção da democracia, projeto dos EUA não é realista
"Será muito difícil democratizar o Iraque"
A tradição de violência política no Iraque, exacerbada durante o governo de Saddam, (...) dificultará a democratização
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MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
Os EUA não deverão ter sucesso
em sua intenção de democratizar
o Iraque -após a provável deposição do ditador Saddam Hussein- porque o país não tem tradição de pluralismo político,
apresenta graves divisões étnicas
e religiosas e possui uma economia dominada pela renda gerada
pela exportação do petróleo, o
que facilita a concentração de poder em torno de uma elite.
A análise é de Thomas Carothers, uma das maiores autoridades do planeta em promoção da
democracia, que dirige o Projeto
Democracia e Estado de Direito,
do Carnegie Endowment for International Peace (Washington).
Ele é autor de, entre outras publicações, "Aiding Democracy
Abroad: The Learning Curve"
(ajudando a democracia no exterior: a curva do aprendizado).
Leia a seguir sua entrevista, por
telefone -de Argel, capital da Argélia-, à Folha.
Folha - O sr. acredita que o Iraque
possa ser democratizado, como
preconiza o governo dos EUA?
Thomas Carothers - Em todos os
países, existe a possibilidade da
democratização do sistema político. Não creio que, em tese, haja
uma ideologia, uma cultura ou
uma tradição que impeça a democratização de um Estado.
Por outro lado, o Iraque é um
país que não está em boas condições para tornar-se democrático
por algumas razões. Primeiro,
mesmo que os EUA venham a ter
sucesso em sua intenção de remover Saddam do poder, o país continuará a não ter nenhuma tradição de pluralismo político. Segundo, a sociedade iraquiana permanecerá bastante dividida étnica e
religiosamente.
Terceiro, a economia do país é
dominada pelo petróleo, o que, ao
menos nos países em desenvolvimento, tem impedido a consolidação da democracia, pois o petróleo acaba criando uma elite
que busca manter-se no poder
com todas as suas forças para
continuar tirando proveito da receita que ele gera. Assim, geralmente, a concentração do poder
econômico numa só fonte acarreta a concentração do poder político em torno de um só grupo.
Ademais, a tradição de violência
política existente no Iraque, que
foi exacerbada durante o governo
de Saddam, também constitui um
aspecto que dificultará a democratização da cena política.
Folha - Não seria etnocêntrico
pensar que a democracia pode ser
exportada, pois se trata de um conceito eminentemente ocidental?
Ou ela pode ser positiva para todos
independentemente das tradições
de cada sociedade?
Carothers - É bom para todos ter
a possibilidade de escolher seus líderes e viver num sistema em que
o governo tem de respeitar certos
limites de seu poder, não podendo, assim, abusar da população
nem maltratar os opositores.
Se for vista como um sistema de
escolha política, no qual a população tem o direito de ajudar a eleger as pessoas que a comandarão
politicamente, a democracia será
positiva para todos. Aspirações
por liberdade existem em inúmeras culturas, sejam elas ocidentais
ou não. Por outro lado, não falo
aqui das formas específicas das
democracias eletivas.
Estas, que podem ir de um sistema com duas Casas no Legislativo
a um com apenas uma, por exemplo, não são necessariamente
aplicáveis a todas as sociedades.
Quem acredita que a exportação
da democracia seja uma iniciativa
etnocêntrica tende a misturar as
formas institucionais da democracia com seus princípios centrais. Estes, sem dúvida, podem
ser considerados universais. Já
viajei bastante, mas nunca conheci uma sociedade em que as pessoas gostassem da tortura ou da
falta de liberdade de escolha.
Folha - Alguns especialistas argumentam que, para manter-se estável, o Iraque precisa de um regime
autoritário, já que há muita rivalidade entre seus grupos étnicos e
religiosos. O que o sr. pensa disso?
Carothers - É verdade que, depois que Saddam for deposto, haverá, no Iraque, a necessidade da
instalação de um sistema em que
haja um líder forte para manter o
país inteiro e relativamente estável. Essa pessoa deverá ter muita
força política e muito poder para
conseguir realizar essa missão.
Isso não significa, contudo, que
o Iraque precise de um sistema
brutal. O país precisará de alguém
com uma força política considerável e com legitimidade aos
olhos da população para manter a
ordem. Provavelmente, militares
americanos, auxiliados por outras
forças internacionais, venham a
desempenhar esse papel no início
da transição política.
Em seguida, haverá a fase mais
complexa da transição, quando os
militares internacionais não vão
querer mais ficar no país e terão
de ser substituídos por um líder
local. Não será fácil encontrar
pessoas capazes de cumprir essa
missão na sociedade iraquiana,
pois a legitimidade não é algo que
aparece do nada. Essa tarefa será
muito difícil para os americanos.
Como sabemos, no Afeganistão, a situação ainda não está sob
controle, e, se as forças internacionais partirem, o governo central cairá. O governo de Hamid
Karzai não é considerado legítimo por várias facções da sociedade afegã, o que o torna praticamente inviável.
Por outro lado, no Iraque, não
existe a tradição da existência de
chefes de guerra, que controlam
partes da sociedade. O Afeganistão tem uma sociedade descentralizada, enquanto, no Iraque, há
uma tradição bem mais centralizadora. A dúvida é saber quem será a pessoa que terá habilidade
para concentrar o poder e, ao
mesmo tempo, manter-se legítima aos olhos da população.
Folha - Após a queda de Saddam,
poderá haver uma espécie de efeito dominó, gerando uma onda de
democratização no Oriente Médio,
como sustentam alguns analistas?
Carothers - Não, de jeito nenhum. Trata-se de uma idéia sedutora, mas há alguns problemas
em relação a ela. Na maioria dos
países do Oriente Médio, há uma
espécie de regime semi-autoritário. Existe um bloqueio político, e
o partido dominante permite algumas liberdades, porém não
quer abrir muito a sociedade, pois
teme que os extremistas islâmicos
ganhem força demais.
Se houver um conflito contra o
Iraque, os extremistas ficarão
mais fortes inicialmente, visto que
deverá ocorrer um aumento do
antiamericanismo. Isso criará
muita tensão política em alguns
países, como a Argélia e o Egito, e
levará os partidos dominantes a
reduzir o espaço político, restringindo as liberdades e impondo
uma maior vigilância. Assim, inicialmente, haverá menos democracia no Oriente Médio.
Ademais, a idéia de que esses
governos e essas sociedades finalmente verão um belo exemplo de
democracia no Iraque e sentirão
uma vontade terrível de copiar o
exemplo iraquiano é absolutamente tola e ingênua. A metade
dos líderes políticos dos Estados
do Oriente Médio viveu em Paris
ou em Londres e conhece bem a
democracia. Contudo eles não
conseguem ou não querem implementá-la em seus países.
Folha - O antiamericanismo tende a aumentar no mundo árabe e
no muçulmano?
Carothers - Atualmente, o antiamericanismo está num nível muito elevado em todo o Oriente Médio. A situação é bastante tensa, e
as pessoas não entendem por que
os EUA querem travar uma guerra que é contrária às leis internacionais e provocará ao menos dezenas de milhares de mortes.
Se a guerra for rápida e bem-sucedida, a opinião pública na região não deverá piorar muito. Todavia, se ela não for como os americanos estão esperando, haverá
um recrudescimento do antiamericanismo. Se, diariamente, as
TVs mostrarem imagens de iraquianos mortos e da destruição
de Bagdá, a situação também se
agravará bastante.
Por outro lado, se as autoridades americanas tiverem a sensibilidade de tratar seriamente do
problema israelo-palestino após a
deposição de Saddam, o antiamericanismo poderá ser contido. Isso sobretudo se a guerra não começar a demorar demais. Tudo
depende do modo como os EUA
agirão. Se Washington não souber forçar os israelenses a oferecer
um acordo de paz razoável aos
palestinos, haverá uma geração
de árabes que odiarão os EUA.
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