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ARTIGOS
O medo que devora a alma
NADINE GORDIMER
Pode haver o fenômeno de um
estado de espírito mundial?
Certamente algo desse tipo vem
existindo há muitas semanas, exceto, possivelmente, nos encraves
isolados pela natureza -isto é, se
as florestas impenetráveis e o gelo
intransponível ainda não tiverem
sido invadidos, finalmente, pela
informática.
Antigamente havia pessoas que
eram encontradas em confins
longínquos, depois de guerras, e
que nem sequer sabiam que ocorrera um conflito. Vivemos num
mundo mais consciente do que
nunca; a consciência de uma
guerra entre a potência dominante entre as nações e uma potência
oposta, de capacidade amorfa
(pois quem é que sabe ao certo
que forças irão se unir em solidariedade religiosa?), vem sendo
uma mudança de clima global
que a tudo permeia e que todos
nós respiramos.
Contra a questão ostensiva das
armas de destruição em massa,
muitas reações podem se manifestar: ira, beligerância, descrença, ultraje sagrado, vindas dos
fiéis da democracia e dos fiéis do
islã.
O medo e os gases
Entre inimigos, em meio ao medo de gases tóxicos e da contaminação invisível por doenças (pois
não podem os gases se dispersar
sobre aqueles que os distribuíram, e as doenças, contaminá-los?), se espalha o miasma daquela atmosfera contra a qual não há
uniforme especial, máscaras ou
abrigos plásticos que possam nos
proteger. O medo. Sem ser reconhecido, ele é compartilhado por
aliados e inimigos, mesmo que
nada mais o seja.
Procuramos alguma espécie de
conselho ou palavra de sabedoria
nos relatos de como outros já enfrentaram o medo. Temos a atitude insensatamente corajosa, indiferente aos perigos, do discurso
de posse de Franklin D. Roosevelt,
em 1933, quando ele declarou
acreditar firmemente que ""a única coisa que temos a temer é o
próprio medo".
A frase soa oca agora, após as
novas formas de extermínio humano que descobrimos desde então para darmos cabo de nós mesmos.
Pode o medo ser uma força que
age para o bem?
Lembremo-nos do velho ditado
segundo o qual ""a segurança
maior reside no medo". Mas essa
idéia, alguém contestará, tolera a
covardia, justifica que nos furtemos ao dever de defender os valores de nossa sociedade.
Tucídides foi o primeiro filósofo
com quem me eduquei na adolescência, e é natural que eu me volte
a ele agora e, num caderno antigo,
encontre outro ponto de vista sobre o fenômeno do medo. ""Que a
guerra é um mal é algo que todos
nós sabemos, e seria insensato
continuar a catalogar todas as
desvantagens nela envolvida.
Ninguém é obrigado a entrar numa guerra por desconhecimento,
nem, se pensar que poderá ganhar com ela, é impedido de fazê-lo pelo medo."
Os protestos de massa contra a
guerra liderada pelos EUA contra
o Iraque são feitos pela convicção
de que a conquista, pela guerra,
da segunda maior reserva petrolífera do mundo não é ""mantida à
distância" pelo medo de que milhares de pessoas classificadas como ""lideradas pelo inimigo" serão mortas e que os corpos dos jovens vitoriosos justos, em seus sacos mortuários, nunca mais irão
precisar de óleo combustível.
""O medo possui muitos olhos e
pode enxergar por baixo da terra", observa Cervantes.
O ponto zero
O medo do que está acontecendo -esse rugir em nossos ouvidos- não começou quando o 11
de setembro de 2001 enterrou a
invencibilidade?
Se o tempo ocupa um plano de
existência às vezes penetrado pelos grandes escritores, será que
T.S. Eliot (1888-1965) não se aventura anos à frente, passando sobre
o ""ponto zero", quando, ainda em
1922, escreve:
""E eu lhes mostrarei algo diferente / De sua sombra, pela manhã, caminhando à sua frente / ou
de sua sombra à noite, erguendo-se para ir a seu encontro; / Eu lhe
mostrarei o medo num punhado
de poeira".
Eu sou uma dessas pessoas que
vivem distantes dos perigos terríveis dos ataques e das retaliações
que atravessam mares e céus. Mas
não estou naquele hoje inexistente encrave de isolamento, fora
deste mundo.
E, como muitos que estão distantes dos continentes em guerra,
tenho, apesar disso, um interesse
pessoal envolvido nesta guerra:
alguém que é a pessoa mais próxima de mim vive, com sua jovem
família, no vulnerável coração de
Nova York.
Ele me conta que a escola das
crianças avisou aos pais que o porão do estabelecimento foi equipado para funcionar como abrigo, com estoque de água e um sistema de ventilação adaptado, capaz de manter à distância os elementos nocivos. Algumas pessoas, diz ele, já fizeram as malas e
deixaram a cidade, alvo óbvio de
violência, quer ela seja direta ou
insidiosa.
Será que isso significa ceder
diante daqueles que ameaçam?
Ou pode ser uma opção sensata
para pessoas que podem se ausentar de seus empregos assalariados e têm algum outro lugar
para ir -um lugar seguro?
Seguro. Quem pode saber o que
e onde fica fora do alcance das armas não convencionais que, nos
dizem, saem de laboratórios, em
lugar de armarias?
Pergunto a ele: ""O que você vai
fazer?".
Ele então me recorda: ""O que
você e seus companheiros faziam
durante as crises do apartheid,
quando havia o perigo de serem
presos pela polícia política ou de
algum fanático de direita jogar
uma bomba para explodir seu
carro, com você dentro?".
Vá levar a vida adiante.
Os perigos são relativos, no
tempo e na distância. O medo é
relativo. Quer ameace uma multidão ou uma única vida, sempre
exige as mesmas respostas: um
sim ou um não.
Render-se por dentro ou negar-se a se deixar dominar pelo atrito,
o medo que devora a alma.
A escritora Nadine Gordimer, 79, Prêmio Nobel de Literatura em 1991, publicou recentemente seu 13º romance,
""The Pickup", onde aborda a questão
muçulmana. No Brasil, já saíram obras
suas como "A Arma da Casa", "A História
dos Meus Filhos", "Ninguém para Acompanhar", "Uma Mulher sem Igual" e "O
Pessoal de July"
Tradução Clara Allain
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