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Não há mais separação entre o
campo de batalha real e o virtual
A "guerra preventiva" é uma forma de crime contra a humanidade. Ela não será a primeira batalha de uma 3ª Guerra Mundial, mas o primeiro passo para uma espécie de guerra civil globalizada
Folha - A respeito do conflito no
Kosovo, o sr. escreveu ter sido instituída uma "estratégia da desinformação". Os Estados Unidos mobilizariam agora algo semelhante?
Paul Virilio - Utilizei a expressão
em meu livro "Estratégia da Decepção". A palavra decepção foi
usada em seus dois sentidos: o
"desinformar", mais próximo do
significado em inglês, e o "decepcionar", mais próximo do significado em francês [e em português". Estamos todos desinformados e desapontados. Essa
guerra vem mostrando ser uma
catástrofe. É uma guerra acidental, preventiva, que escapou de
sua natureza substantiva, clausewitziana [do pensador prussiano
Carl Phillip Gottfried von Clausewitz (1780-1831)", que seria a
guerra como o prosseguimento
da política por outros meios.
Folha - Por que os EUA não conseguiram convencer o mundo de que
precisavam derrubar Saddam?
Virilio - Em verdade, os EUA
"inventaram" o inimigo. Numa
guerra tradicional, o inimigo se
declara enquanto tal e, em resposta, declaramos a guerra contra ele.
O extraordinário golpe que foi o
atentado de 11 de setembro não
possuía um inimigo "declarado".
É claro que a guerra no Afeganistão foi uma resposta mais ou menos lógica ao grupo de Osama bin
Laden. Mas era ainda preciso dar
um rosto ao inimigo. O presidente George W. Bush foi então levado a "inventar". Saddam não foi
um inimigo "declarado". Ocorreu
uma negação da verdade política
própria aos conflitos armados.
Folha - Até que ponto a atual
guerra não seria legível sem a mídia, já que a mídia é fundamental
ao processo de invenção?
Virilio - Em meu livro "Guerra e
Cinema" escrevi que o campo de
percepção de uma guerra é mais
importante que o campo de batalha propriamente dito. Estamos
agora em plena teletecnologia on-line. A conquista da telinha e a
conquista do campo de percepção
na esfera mundial se tornaram o
objetivo da guerra em seu atual
modelo, seja ela terrorista, como
no WTC, seja ela internacional,
com a do Iraque. Não estamos
mais hoje em condições de separar o campo de batalha real e o
campo de batalha on-line, virtual.
Folha - Esse campo virtual é também utilizado pelo lado iraquiano?
Virilio - Com certeza. Há agora
uma diferença importante com
relação à Guerra do Golfo, de
1991, que eu abordei em ensaio
chamado "L"Écran du Désert"
["A Tela do Deserto"". Havia naquele momento uma fonte única
de informação, que era o pool entre a CNN e o Pentágono. Isso gerou controvérsias por parte de
agências, como a France Presse,
que se sentiram excluídas do
campo de batalha. Essas fontes estão hoje multiplicadas (Fox News,
BBC, Al-Jazeera), o que torna a
guerra mediática mais confusa.
Folha - Foi para acentuar a virtualidade que se incorpora às tropas o
jornalista "encaixado" [dotado de
câmara e equipamento de transmissão de textos e imagens"?
Virilio - Trata-se em verdade de
um "gadget" [bugiganga". A partir do momento em que o governante designou seu inimigo -a
relação de Bush com Saddam-,
os jornalistas não estão mais livres
de seus próprios atos. Se a guerra
é ilegal do ponto de vista da ONU,
se o inimigo foi inventado pelos
norte-americanos, os jornalistas
"encaixados" estão embarcados
na ilegalidade dessa mesma guerra. O jornalista não tem liberdade
em suas relações informativas
com o inimigo. Em outras guerras
essa liberdade existia. Como ela
deixou de existir, como é que a informação pode ser livre? Não o é.
Folha - A informação se tornou
um componente tático.
Virilio - A informação que deveria ser "democrática" não o é
mais. Caímos então nos mecanismos clássicos da propaganda.
Folha - O sr. disse, há três anos,
que a informação on-line era bem
mais do que a propaganda.
Virilio - Obviamente. A informação é aquilo que chamei de "bomba informática". Digamos, para
simplificar, que segundo a física
há na matéria três dimensões: a
massa, a energia e a informação.
A guerra seguiu essas três etapas.
Ela se definiu enquanto guerra como guerra de massa, com massas
de soldados, com o século 19 e as
guerras napoleônicas ou com as
grandes guerras do século 20.
O militar estava na ofensiva, enquanto a defensiva era feita por
meio de fortificações, que são minha especialidade inicial, como
urbanista. As cidades eram fortificadas por imensas muralhas. Havia a Muralha da China, o Muro
do Atlântico. A segunda dimensão mobilizada pela guerra foi a
energia. A energia necessária para
propulsionar a bola do canhão
-que tornou obsoletas as muralhas- e até a bomba atômica, que
esteve na origem do equilíbrio entre duas superpotências até o final
do século 20.
Folha - E a informação?
Virilio - A informação já existia
em formas anteriores de guerras,
com a espionagem ou a propaganda, com o reforço da fé religiosa nas Cruzadas. Mas hoje a dimensão informativa se torna primordial nos conflitos.
Folha - A informação não é mais
instrumento de libertação?
Virilio - Infelizmente, não. Albert Einstein dizia existirem três
tipos de bombas: a bomba atômica, a bomba da informação e, para
ele num futuro, a bomba demográfica. Estamos hoje atravessando o momento da explosão da
bomba da informação, da bomba
da informática. Esta última é bem
mais perigosa que a bomba da informação da qual falava Einstein,
porque na época os computadores não estavam tão desenvolvidos. Agora, com a interatividade,
com a comunicação on-line, assistimos à fusão de opiniões.
Folha - Haveriam outras "bombas" ainda a caminho?
Virilio - Com certeza há algo que
eu suponho que possa se tornar
uma bomba genética, capaz de
modificar o genoma e operar mudanças na raça humana.
Folha - O que sobrará então do cidadão, tal qual o concebemos desde o final do século 18?
Virilio - A partir do século 19 assistimos à emergência de um fenômeno importante, que foi a padronização. Ocorreu a padronização dos objetos com a Revolução
Industrial. Ocorreu uma padronização de opiniões, que falseia a
democracia na medida em que a
informação é apresentada de uma
só maneira. Entramos agora no
século 21 com algo bem mais agudo, bem mais grave, que é a "sincronização das emoções".
Folha - O sr. poderia explicar isso
um pouco melhor?
Virilio - A transmissão ao vivo, a
ocorrência e a percepção dessa
ocorrência em tempo real favorecem não só a padronização das
opiniões, mas também a possibilidade de as emoções serem simultâneas. Não foi preciso esperar por uma guerra para que tal
fenômeno surgisse. Ele nasceu em
experiências religiosas, com os telepastores. É algo que supera a dimensão da propaganda e se torna
algo de perigosa importância cultural no plano globalizado. Podem existir ramificações positivas
na sincronização das emoções,
como o fato de, a 15 de fevereiro,
10 milhões de pacifistas terem saído às ruas em centenas de grandes cidades. Mas essa sincronização poderá mobilizar milhões de
pessoas motivadas pelo ódio.
Folha - Pode-se falar em democracia quando a emoção está tão
fortemente envolvida?
Virilio - Estamos diante de uma
ameaça, que é a democracia pela
emoção, cujo primeiro exemplo
foi fornecido pelos nazistas e pelo
uso que eles fizeram das emissoras de rádio que orientavam manifestações simultâneas na Alemanha. Conhecemos relativamente bem os fenômenos de alucinação e loucura coletiva que implicavam essas cerimônias.
Folha - É algo que tende a se implantar como modelo?
Virilio - Eu chamaria a atenção
para o fato de não se tratar de algo
conjuntural. É algo estrutural. Se a
padronização da opinião já é uma
ameaça para a democracia representativa, a padronização das
emoções é uma ameaça definitiva
contra qualquer projeto de democracia. Caminharíamos para
aquela dimensão religiosa e irracional que existiu no paganismo.
Folha - A religiosidade tem sido
um componente forte nos discursos de Bush e de Saddam.
Virilio - É terrificante. Acredito
que a "guerra preventiva" é uma
forma de crime contra a humanidade. Ela não será a primeira batalha de uma 3ª Guerra Mundial,
mas o primeiro passo para uma
espécie de guerra civil globalizada. Até aqui as guerras civis -e as
mais mortíferas foram sempre as
guerras de religião- estavam localizadas: a Comuna de Paris, a
Guerra Civil Espanhola, a Bósnia.
Mas agora ela se globaliza, por
meio de apelos à guerra santa islâmica e os apelos paralelos à cruzada de Bush. É uma ameaça verdadeira contra a humanidade.
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