|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
BAGDÁ A CIDADE PROIBIDA
Controle de informações e inúmeros desmentidos fazem com que poucos realmente saibam o que acontece na capital iraquiana
SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A AMÃ
Com seus trejeitos e humor ferino habituais, o ministro da Informação iraquiano, Mohammed
Said Al-Sahaf, informava aos jornalistas reunidos na nova sede do
Ministério da Informação, no
próprio hotel Palestine onde a imprensa estrangeira está hospedada, que tinha notícias. Eram terríveis, dizia ele.
Dois ônibus de organizações
não-governamentais que traziam
escudos humanos de diversas
partes do mundo de Amã, na Jordânia, para Bagdá tinham sido
atingidos por bombas soltas pela
coalizão anglo-americana.
"Há diversos feridos no hospital
da cidade de Rutba, entre eles
norte-americanos. Não sabemos
ainda o número de mortos", disse
Al-Sahaf. "É realmente incrível:
agora, os bravos norte-americanos começaram a matar seus próprios compatriotas!".
Dois dias depois, um dos escudos humanos daria a seguinte entrevista: nunca houve bombardeio, mortos e nem mesmo ônibus. No caminho para Bagdá, disse, um carro que levava quatro
voluntários, um deles realmente
norte-americano, teve seu pneu
furado por um prego bem no momento em que um avião da coalizão sobrevoava a rodovia.
O motorista, iraquiano, pensou
que se tratava de um bombardeio,
se assustou e jogou o carro para
fora da estrada. Com isso, se machucou e feriu levemente os outros passageiros. Foi levado para o
hospital de Rutba e lá espalhou
que todos tinham sido vítimas de
um ataque dos EUA.
Quem está falando a verdade?
A verdade é que poucas pessoas
sabem o que realmente está acontecendo em Bagdá, e todas elas
são membros do governo iraquiano. Nunca o que os britânicos
chamam de "a névoa da guerra"
esteve tão evidente quanto neste
conflito, especialmente do lado
dos invadidos, escolado pela estrutura montada por três décadas
de uma ditadura que preza mais
do que tudo o controle das informações e pratica uma censura ferrenha em todos os setores da imprensa.
"Da varanda do 11º andar"
O controle dos pouco mais de
120 jornalistas que continuam na
capital iraquiana é cada dia pior e
vem fazendo o veterano John F.
Burns, do "New York Times", começar seus últimos textos citando
sempre a frase: "Pelo menos o que
consigo ver da varanda do décimo-primeiro andar de meu hotel
em Bagdá".
Além de serem obrigados a andar com um guia apontado pelo
governo e um motorista que não
raro faz relatos de suas atividades
para o serviço secreto, os jornalistas estrangeiros só podem se hospedar num único hotel, que é o
mesmo onde agora está baseado o
Ministério da Informação e sua
onipresente polícia secreta.
Quando arriscam sair sozinhos,
são presos e expulsos, como aconteceu na última segunda com um
repórter australiano, que resolveu
dar uma caminhada pela cidade
sem o seu guia.
As saídas agora quase só acontecem em grupos, sempre em
quatro ou cinco ônibus, e o destino é invariavelmente um alvo civil
(nunca militar ou governamental,
como os palácios atingidos, até
ora inéditos para a imprensa) ou
um dos hospitais da região que
abriga as centenas de vítimas dos
bombardeios.
Nas cerca de três ou quatro entrevistas coletivas diárias com um
dos generais-ministros do governo Saddam Hussein, há um festival de contra-informações, negativas e desmentidos.
Não, os americanos não estão a
100 quilômetros de Bagdá (ou a
90, ou a 60...). Não, eles não dominaram o Aeroporto Internacional
Saddam Hussein; o lugar que eles
tomaram e estão confundindo é
uma ex-base aérea britânica da
Segunda Guerra Mundial. Sim,
eles tomaram o aeroporto, mas
nós estamos mandando milhares
de soldados para tomá-lo de volta. Não, Saddam não está ferido.
Míssil identificado
Mesmo assim, é possível tentar
contar o que acontece e até mesmo descobrir fatos que ambos os
lados gostariam de ver continuarem escondidos.
Na última semana, por exemplo, o jornalista Robert Fisk, do
londrino "The Independent",
conseguiu confirmar que o ataque ao mercado Al Shaab, ocorrido no final da semana retrasada
na capital iraquiana e que matou
mais de 50 civis, foi mesmo um
bombardeio de autoria da coalizão anglo-americana.
Ele achou no local um pedaço
do míssil com o respectivo número de série, e a redação do jornal
em Londres confirmou que se tratava realmente de um produto da
fabricante de armas Raytheon, a
mesma empresa de Tucson, no
Arizona, que foi escolhida para
implantar o Sivam (Sistema de
Vigilância da Amazônia) no Brasil, num processo polêmico.
Todos os Tomahawk utilizados
pelos EUA nesta guerra são de fabricação da Raytheon.
Antes, a reportagem da Folha
havia revelado o caso de um ferido iraniano "hospitalizado" que
saiu de carro logo após uma coletiva, numa armação evidente do
governo.
Ainda, nos últimos dias, enquanto a coalizão dizia estar a menos de 10 km do centro de Bagdá,
uma equipe da BBC que acompanha soldados britânicos, usando o
aparelho de telefone por satélite
Thuraya, conseguiu precisar que
na verdade o destacamento distava 25 km da periferia da cidade.
"Traidores"
O precioso aparelho, que dá ao
usuário sua localização exata, latitudinal e longitudinal, e funciona
em virtualmente todo o Oriente
Médio, desde que esteja ao ar livre, é um dos poucos pontos em
comum entre as forças dos dois
lados: ambos o odeiam em mãos
civis e tentam controlar seu uso.
Na última quinta, o Comando
Militar americano proibiu sua
utilização pelos repórteres "embutidos" nos destacamentos.
No começo da semana, o governo iraquiano tinha levado ao ar na
emissora estatal um comunicado
em que relembrava aos cidadãos
que era proibido o uso do telefone
por satélite no país tanto por locais quanto por estrangeiros. Os
flagrados, dizia o texto, seriam
julgados como traidores em tempos de guerra.
O aviso ia além e se comprometia a recompensar com 5 milhões
de dinares iraquianos (cerca de
US$ 2.000) quem delatasse ao governo o nome e o endereço dos
usuários clandestinos, "sejam eles
traidores ou intrusos".
Toblerone na alfândega
A reportagem da Folha entrou
no país com um deles, junto de
um link de internet também por
satélite. Vinham numa maleta tipo executivo. Como muitos outros antes, a equipe optou por não
declará-los na fronteira iraquiana
devido a relatos de outros jornalistas já em Bagdá que tiveram
seus equipamentos confiscados,
lacrados e entregues dias depois
na então sede do Ministério da Informação, na capital.
Uma vez lá, o uso só era permitido nas dependências e no horário
de funcionamento do órgão público, sob a supervisão de seus
funcionários, o que limitaria ainda mais um trabalho já muito
controlado. Quem seguiu essas
regras não conseguiu transmitir,
por exemplo, texto e fotos do começo da guerra, na madrugada
do último dia 20 de março.
Na alfândega, um prosaico tablete do chocolate suíço Toblerone comprou a vista grossa do funcionário que revistaria as bagagens dos repórteres, presente aliás
solicitado pelo próprio policial.
Uma vez no hotel em Bagdá, 600
quilômetros adiante, a maleta
passava o dia escondida dentro da
tubulação do ar-condicionado do
quarto e seu funcionamento era
restrito ao período noturno, entre
as 19h e as 2h, sempre na parte
baixa da varanda que dava vista
para os guardas que vigiavam o
edifício 24 horas por dia.
Na saída do país, no começo da
semana que passou, com a maleta
já deixada para trás no duto do ar-condicionado, o telefone e o link
da internet por satélite viajaram
num lugar inusitado: no lugar da
placa de cerâmica que protege a
parte da frente de um dos coletes à
prova de bala comprados pela
equipe da Folha em Londres antes da guerra.
A placa é o que faz o colete ser
do tipo A3, ou seja, que suporta tiros de M16 e Kalashnikov, os fuzis
utilizados respectivamente pela
coalizão e pelo Exército iraquiano
neste conflito. Por coincidência, é
também exatamente do tamanho
do aparelho.
Polícia secreta
Tanta preocupação se justificava. Durante as madrugadas,
membros da polícia secreta que
ficavam ostensivamente vigiando
os corredores de todos os andares
e o lobby de entrada do hotel da
imprensa costumavam dar incertas nos quartos dos jornalistas em
busca dos aparelhos proibidos. A
mesma cena se repetia sempre:
batidas violentas na porta, seguidas de gritos e truculência.
Muitos foram destruídos, e não
poucos jornalistas foram presos e
posteriormente expulsos do país
por estarem desrespeitando a
orientação do general-ministro,
que por sua vez seguia ordens diretas de Saddam Hussein.
O quarto em que se hospedou a
equipe da Folha foi visitado em
duas noites diferentes. Os agentes
não conseguiram entrar.
Nos quartos em que conseguiram, os policiais não deixaram
um saldo agradável. Dois repórteres do tablóide nova-iorquino
"Newsday" foram arrancados da
cama no meio da noite, acusados
de espionagem, e ficaram presos
incomunicáveis por uma semana.
Uma equipe de TV italiana teve
seus aparelhos destruídos e foi expulsa do país; uma fotógrafa que
trabalhou na campanha do ex-vice-presidente americano Al Gore
foi detida nas mesmas condições
e continuava desaparecida até a
conclusão desta edição.
Texto Anterior: Não há mais separação entre o campo de batalha real e o virtual Próximo Texto: Pesquisa: No Brasil, 90% são contra a guerra Índice
|