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AMÉRICA LATINA
Trinta anos depois, ex-asilados relatam histórias, como a do sargento que sobreviveu a fuzilamento pulando em rio
Brasileiros lembram horror do golpe chileno
CHICO DE GOIS
DA REPORTAGEM LOCAL
O rio Mapocho, que corta Santiago do Chile de leste a oeste, estendendo-se por 30 quilômetros,
ficou vermelho em 11 de setembro
de 1973 e nos dias imediatamente
posteriores. As cenas de horror
histórico, descritas por brasileiros
refugiados no país do socialista
Salvador Allende, chocam até hoje por serem reais.
A agonia dos simpatizantes de
Allende começou pela manhã,
quando os caças Hawker Hunter
bombardearam o Palácio de La
Moneda, onde o presidente e alguns apoiadores tentavam resistir. À tarde, o presidente, percebendo que não tinha escapatória,
suicidou-se.
O golpe, liderado pelo general
Augusto Pinochet, que em 23 de
agosto assumira a chefia do Exército sob as bênçãos do próprio
Allende, causou a morte ou o desaparecimento de pelo menos
4.000 pessoas.
Oficialmente, quatro brasileiros
foram mortos pela ditadura chilena -Luiz Carlos Almeida, por
exemplo, foi fuzilado sobre uma
das pontes do rio Mapucho -e
mais um está desaparecido
-Nelson de Souza Kohl, preso
em 15 de setembro de 1973 pela
Força Aérea Chilena.
"Foi um dos episódios mais
aterrorizantes da minha vida", relembra Alfredo Sirkis, antigo militante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), hoje secretário municipal de Urbanismo do
Rio de Janeiro.
Sirkis conta que estava na casa
de um amigo naquela manhã e
acompanhou pela rádio Magallanes as informações sobre o golpe.
O narrador dos eventos era o próprio Allende.
"Com o golpe, havia uma campanha contra os estrangeiros",
disse Sirkis à Folha. "A sociedade
estava muito dividida e a classe
média denunciava quem não fosse chileno." As memórias de Sirkis sobre o golpe estão no livro
"Roleta Chilena".
O deputado estadual do Rio de
Janeiro Carlos Minc (PT) também
viveu momentos de tensão em
Santiago. "Eu vi corpos boiando
no Mapocho", contou. Detido na
tarde do golpe, ele disse que ouviu
oficiais falarem claramente para
matar qualquer um que se mexesse. "Eu fazia estágio e inventei
uma história qualquer. Dei sorte e
eles me soltaram."
De acordo com o deputado,
aviões lançavam panfletos pedindo à população que denunciasse
os estrangeiros. "Eu poderia estar
morto."
Essa mesma sensação tem o ex-sargento José Araújo Nóbrega.
Exilado no Chile desde que Allende venceu as eleições, em 4 de setembro de 1970, Nóbrega trabalhava no Serviço de Cooperação
Técnica do Chile, um organismo
estatal de assistência técnica para
a pequena indústria. No dia do
golpe, ele lembra que subiu no telhado da repartição onde trabalhava e presenciou o bombardeio
ao La Moneda.
Nóbrega foi preso três dias depois do golpe e, encaminhado ao
Estádio Nacional, foi submetido a
torturas.
Na madrugada do dia 15, ele e
mais um grupo de quatro presos
foram colocados em um ônibus
sem bancos e levados à beira do
rio Maipo. "Estávamos amarrados com as mãos para trás", descreve Nóbrega. Os carabineiros os
soltaram e devolveram seu passaporte e os dos demais. "Foi aí que
percebi que a intenção deles era
nos matar pelas costas, forjando
uma situação para dizer que tentamos fugir."
Nóbrega, então, saltou em direção de um carabineiro e atracou-se com ele. Na confusão, quando
preparava-se para fugir, foi atingido por um tiro no pé e outro
trespassou sua camiseta, sem,
contudo, acertá-lo.
Ele saltou no rio Maipo e agarrou-se a um galho de árvore. Os
carabineiros pensaram que tinha
morrido. "Quando percebi que o
ônibus havia partido, saí. Ainda
ouvi alguns dos presos gemendo,
mas não dava para fazer nada."
Nóbrega conseguiu refúgio na
casa do cônsul dinamarquês. À
noite, porém, a polícia fez uma
vistoria no local e ele teve de permanecer escondido no depósito
de milho, entre porcos. De lá, foi
para uma casa que passou a ser a
Embaixada de Honduras, onde
partiu depois para Suécia.
Infiltração
As atividades políticas dos brasileiros que estavam no Chile
eram monitoradas pelo extinto
SNI (Serviço Nacional de Informação). Nóbrega lembra que,
quando estava preso no Estádio
Nacional, ouviu uma pessoa falando em "portunhol" com oficiais que faziam os interrogatórios. "Logo depois do golpe, o serviço de repressão brasileiro já estava no Chile."
Para o presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos,
Jair Krischke, "os serviços de informação do governo haviam se
infiltrado entre os brasileiros antes mesmo do golpe". Para reforçar sua tese, ele exibe alguns documentos. Um deles é da Superintendência dos Serviços Policiais,
datado de 27 de novembro de
1972.
O documento é um mandado
de busca contra James Alem da
Luz, "atualmente foragido no
Chile, que deverá retornar ao Brasil passando antes pelo Uruguai".
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