|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
SEXO VULNERÁVEL
Idade das vítimas vai de 5 a 80 anos; violência é praticada por todas as partes envolvidas na guerra
Estupro sistemático é arma de guerra no conflito do Congo
DA REDAÇÃO
Générose, 20, foi raptada numa
estrada do leste da República Democrática do Congo quando ia
comprar seu vestido de noiva.
Um soldado a arrastou até uma
cabana de plástico no meio de
uma floresta, onde outros três o
esperavam. Por 17 dias, ela foi estuprada diariamente pelos quatro
homens. Eventualmente, comia
um mingau feito com a farinha
que eles roubavam. Dormia num
canto onde depois descobriu ser o
mesmo local em que era mantida,
antes dela, outra mulher. Não tomava banho nem trocava de roupa. Quando falava, apanhava. "Finalmente, eles se cansaram e me
mandaram embora", disse.
O depoimento faz parte de um
relatório lançado pela organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch
(HRW) em junho do ano passado, após três semanas de entrevistas e pesquisas no país. Desde então, a situação na República Democrática do Congo, embora tenha ganhado evidência e gerado
discussões, não mudou em nada.
"O estupro sistemático tem sido
usado como arma de guerra para
ferir as mulheres e, mais do que
isso, para humilhar os homens
que lutam do outro lado e destruir
as comunidades, tornando muito
mais difícil para elas se refazerem
após o conflito", disse à Folha
Noeleen Heyzer, diretora-executiva do Unifem, o fundo da ONU
para as mulheres.
O Congo não é o primeiro lugar
atingido pelo problema e, na avaliação do Unifem, não será o último -antes do conflito em Ruanda, no início dos anos 90, a violência sexual contra a mulher em zonas de conflito nem sequer era
considerada crime de guerra.
Mas é lá que a situação se tornou mais gritante nos últimos
anos, com ampla participação de
todas as forças envolvidas no conflito que eclodiu no país em 1996
-forças do governo, combatentes rebeldes, soldados de Ruanda
e grupos armados do Burundi.
Com a economia local destruída
pela guerra civil, as mulheres
-muitas delas tornadas chefes
de família com a morte dos homens em combate- são obrigadas a manter seu trabalho na lavoura e nas florestas, onde produzem carvão vegetal, expondo-se
ao risco. Raptadas, são mantidas
como escravas para préstimos sexuais e domésticos por períodos
que às vezes superam um ano
-em parte desses grupos, a prática da violência é motivo de admiração, compensada com poder.
Muitas que buscam proteção
nas cidades acabam sofrendo violência sexual por parte de soldados do governo e mesmo funcionários públicos. Enquanto o objetivo dos insurgentes é aterrorizar
as comunidades para que estas se
submetam à sua autoridade, muitos funcionários do governo
usam a fragilidade da lei local para
acobertar seus crimes sexuais.
Futuro em risco
Ainda que sejam as maiores vítimas, as mulheres não são as únicas a sofrer as consequências dos
estupros sistemáticos. "Elas são a
última barreira para as crianças.
Além desses estupros as destruírem, seus filhos ainda são sequestrados para se tornar soldados ou
escravos sexuais", diz Heyzer.
As idades das vítimas variam de
cinco a 80 anos. Muitas são atacadas com a família. Os homens,
quando não são mortos, fogem.
As consequências têm sido devastadoras, com a proliferação da
Aids e a gravidez de meninas e
mulheres que não terão condições de criar seus filhos.
Embora tenha aumentado o número de grupos que prestam assistência às vítimas de estupros no
país, muitas nunca se recuperam
dos efeitos físicos, psicológicos e
sociais. Nem a polícia nem o sistema judiciário tratam os casos a sério, e a impunidade prevalece.
A situação dá algum sinal de
mudança no escopo do debate.
"Aos poucos o silêncio está sendo rompido, e quem está fazendo
isso são as mulheres. Elas estão
rompendo esse ciclo de vergonha
e trazendo o assunto para um debate aberto, tirando-o da seara individual e passando à pública, para que se busque soluções legais",
diz Heyzer, em um tom esperançoso. "Mas, se não houver paz, será difícil deter o processo da violência."
(LUCIANA COELHO)
Texto Anterior: Sexo vulnerável: Uma em cada três mulheres enfrenta violência, diz ONU Próximo Texto: Diplomacia com arte: Pelo menos na música, Iraque e EUA fazem dueto Índice
|