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SOCIEDADE
Segundo análises, comprar deixou de ser ideal de felicidade, mas a insatisfação tem gerado ainda mais consumo
Mercado estimula o "consumo infeliz"
CÍNTIA CARDOSO
DE NOVA YORK
Que Papai Noel não ouça, mas
comprar coisas já não é o ideal de
felicidade de muita gente, ao menos nos países ricos -essa conclusão está em pesquisas e livros
recém-divulgados nos EUA. Os
americanos, porém, nunca consumiram tanto, o que, para os estudiosos, mostra que essa insatisfação pode ter sido transformada,
paradoxalmente, em um potente
motor para o mercado.
Estima-se que os gastos com
serviços e mercadorias representem, hoje, quase dois terços de toda a atividade econômica dos
EUA. A cifra chega a US$ 7,5 trilhões por ano. Os números são os
mais altos desde o fim da Segunda
Guerra Mundial.
Mas o descompasso entre a capacidade de gastar mais e o grau
de felicidade é flagrante. Estudo
realizado pela consultoria Roper
ASW mostra que apenas 30% dos
americanos dizem acreditar que
aumento do poder aquisitivo seja
proporcional à elevação do grau
de felicidade. Nos anos 50, o aumento da renda era motivo para
aumento da felicidade para a
maioria das pessoas, segundo especialistas ouvidos pela Folha.
Insatisfação estimulada
"A insatisfação das pessoas é
cultivada pelo mercado. Essas
condições têm de ser mantidas,
ou o mercado não sobreviveria.
Trabalhamos mais horas e produzimos mais. Esses produtos têm
de ser vendidos. Estamos presos
na armadilha do consumo compulsivo que não traz satisfação",
avaliou Michael Carley, especialista em consumismo e ambiente
e professor da Universidade Heriot-Watt, na Escócia.
A discussão sobre consumo e
felicidade também é tema de
"You Don't Have To Be Rich"
(você não tem de ser rico), livro de
auto-ajuda na área de finanças
lançado recentemente nos EUA.
A autora, Jean Chatzky, reforça a
teoria de que bens materiais não
trazem satisfação pessoal e ensina: "Pare de correr atrás de dinheiro e viva". Para chegar à conclusão, Chatzky usou os dados da
pesquisa da Roper ASW.
Mais trabalho, mais gastos
A corrida desenfreada às compras também é analisada como
parte de um ciclo perverso que se
resume na equação: trabalhar
mais para poder gastar mais.
"Esse é o ideal de felicidade do
nosso tempo. Mas a recompensa
do consumo não é satisfatória",
diz Betsy Taylor, presidente da organização "Centro para um Novo
Sonho Americano", ONG que faz
campanhas para alertar sobre os
perigos do consumo compulsivo.
"Vivemos um culto exacerbado
ao consumismo. A publicidade
vende a idéia de que a felicidade é
medida pelos bens que se possui.
Só que esse padrão de consumo
pregado é inatingível e insustentável. Mesmo assim, o resultado é
que vemos que as pessoas trabalham cada vez mais para tentar alcançar a felicidade no consumo",
afirma Taylor.
Consumo patriótico
Nos EUA, parte desse consumo
é alimentada por medidas governamentais, como o corte de impostos promovido pelo presidente George W. Bush.
"Estamos na era do consumo
patriótico. A mensagem que recebemos é a de que temos de gastar,
porque a economia depende de
nós. Pouco importa o acúmulo de
dívidas no cartão de crédito ou o
aumento dos pedidos de falência
pessoal", afirmou Taylor.
As estimativas mais recentes
calculam que, em 2003, haja 1,8
milhão de pedidos de falência
pessoal nos EUA. No ano passado, o número ficou em torno de
1,6 milhão.
Mas quando as trajetórias do
poder aquisitivo e felicidade se
distanciaram? Para os analistas,
estudos indicam que desde os
anos 50 o abismo tem crescido. O
fenômeno do "hiperconsumismo" teria ganhado força a partir
dos anos 80.
Engarrafamentos
"Historicamente, as pessoas
sempre desejaram segurança material. Isso é constante em todas as
décadas do século 20. O problema
é que vivemos hoje a era do consumo imperativo", disse Taylor.
Os analistas são enfáticos ao
afirmar que a geração de hoje vive
em casas mais confortáveis e têm
um poder de consumo que supera com folga o padrão de vida das
décadas anteriores, mas não há
tempo para desfrutar. "As pessoas cometem o erro de pensar
que 20 minutos de compras podem substituir a escassez de tempo para lazer causada pelo excesso de horas de trabalho. De que
adianta se endividar para ter o
carro mais caro para se estressar
em engarrafamentos?", questiona-se Carley.
"Para escapar à armadilha da
ditadura do consumo, basta controlar melhor as finanças e ver
menos "reality shows" sobre milionários. Não é preciso virar "bicho-grilo" e se isolar numa cabana",
brincou Taylor.
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