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São Paulo, domingo, 09 de março de 2003

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Analista americano defende a guerra, mas acha que o país pode ficar sem aliados e terá de pagar a conta da crise

Isolamento custará caro aos EUA, diz Pollack

FERNANDO CANZIAN
DE WASHINGTON

Se o ditador iraquiano, Saddam Hussein, não estivesse em cima da segunda maior reserva de petróleo do mundo, provavelmente o governo do presidente George W. Bush não invadiria o Iraque, como pretende.
"A economia do mundo inteiro depende de uma coisa: petróleo barato", diz Kenneth Pollack, autor do aclamado livro "The Threatening Storm: The Case for Invading Iraq" (a tempestade ameaçadora: a questão da invasão do Iraque), no qual apresenta argumentos a favor de uma guerra contra Saddam.
Pollack, ex-diretor do Conselho de Segurança Nacional no governo Bill Clinton e analista militar da CIA durante a Guerra Irã-Iraque (1980-88), afirma que os EUA têm de "enfrentar um custo potencial de uma guerra agora ou uma guerra potencialmente muito pior no futuro próximo".
Se agirem por conta própria, diz, os americanos correm o risco não apenas de pagarem a conta da guerra e da reconstrução sozinhos, como também de ficarem mais isolados quando tiverem de agir contra outro inimigo internacional mais forte que Saddam.
Leia entrevista que Pollack concedeu à Folha em Washington.
 
Folha - Se Saddam Hussein estivesse na África, longe do petróleo do Oriente Médio, e tivesse o mesmo potencial bélico de que dispõe atualmente, o sr. acredita que a preocupação americana com ele seria a mesma?
Kenneth Pollack -
Provavelmente não, porque ele seria uma ameaça menor aos Estados Unidos e ao resto do mundo. O golfo Pérsico é uma região extremamente importante para o mundo todo. A economia do mundo inteiro depende de uma coisa: petróleo barato. E a estabilidade do golfo Pérsico depende e está totalmente determinada pela existência ou não de um fluxo de petróleo barato.
Se Saddam Hussein vivesse na África, não haveria nenhuma ameaça para a economia mundial. Mesmo se ele fosse um motivo de preocupação para seus vizinhos africanos, isso não teria a menor importância. A economia mundial não teria qualquer impacto com a sua existência.

Folha - Quais serão as consequências de uma ação norte-americana contra o Iraque sem o apoio do Conselho de Segurança da ONU? Que futuro terá a Organização das Nações Unidas depois de uma ação desse tipo?
Pollack -
Há dois problemas potenciais em os Estados Unidos irem à guerra contra o Iraque sem as Nações Unidas. O primeiro tem a ver com a reconstrução do país. Será extremamente mais difícil conseguir apoio financeiro internacional para isso. Haverá países dispostos a ajudar, mas o entusiasmo será mínimo. Não teremos o apoio financeiro de que precisaríamos para a tarefa de reconstruir o Iraque pós-guerra.
O segundo ponto, que é o que mais me preocupa, é a questão da potencial crise pós-Iraque. Saddam Hussein não será o último problema que os Estados Unidos e a comunidade internacional deverão enfrentar.
Em um certo sentido, a crise iraquiana é bastante peculiar. Os EUA podem se dar ao luxo de cuidar sozinhos do Iraque. Nós podemos, sozinhos, tirar Saddam do poder. É um fato. E poderíamos provavelmente reconstruir o Iraque também sozinhos.
O problema é que a próxima crise que aparecer no horizonte provavelmente não será tão fácil de resolver como essa. Aí nós vamos precisar de nossos aliados. E o meu receio é que, se os EUA atacarem sozinhos o Iraque desta vez, nossos amigos não estarão lá para nos ajudar quando estivermos em campo na próxima.

Folha - Em seu livro, o sr. faz uma analogia entre Saddam Hussein e Adolf Hitler. Afirma que, no início do nazismo, tanto França quanto Reino Unido não se importaram com ele e não tiveram a coragem de agir na hora certa. O sr. vê Saddam como um Hitler em potencial?
Pollack -
Nós enfrentamos hoje um momento muito semelhante. Em 1938, ingleses e franceses olhavam para Hitler e diziam: esse sujeito é um problema e tanto. São grandes as chances de termos de enfrentá-lo em algum ponto no futuro. Mas eles optaram por não fazê-lo em 1938 na esperança de que algo pudesse acontecer para evitar esse confronto no futuro. E a história mostrou que eles estavam profundamente enganados. Milhões de pessoas foram mortas e assassinadas como resultado daquele erro de avaliação.
Saddam Hussein não é como Hitler no sentido de que Hitler era muito mais ameaçador. Ele estava no coração da Europa, num dos países mais importantes da região, tinha a segunda economia do mundo na mão e o Exército mais poderoso do planeta.

Folha - Documentos revelados recentemente mostram que o papel dos Estados Unidos na "criação" de Saddam Hussein foi muito mais profundo do que se pensava. O atual secretário da Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, esteve pelo menos duas vezes com ele, no início dos anos 80, ajudando a reatar as relações diplomáticas entre os dois países. E conhecia suas aspirações militares e políticas no golfo Pérsico. Qual a responsabilidade dos Estados Unidos nesta crise?
Pollack -
Essa é uma grande pergunta. Os Estados Unidos realmente desempenharam um papel que contribuiu para que Saddam se transformasse no que é. Não há dúvida em relação a isso. Mas a pergunta mais importante é a seguinte: isso deveria nos desqualificar? Deveria nos impedir de agir agora? A resposta é não. Nós cometemos um erro, um grande erro, no início dos anos 80. Mas isso não deve nos desqualificar para enfrentar o problema e a ameaça que ele representa agora.

Folha - E depois da guerra? Qual será o futuro do Iraque?
Pollack -
No início havia uma percepção, aqui, de que a reconstrução do Iraque seria muito parecida com a do Afeganistão. Haveria um governo de transição e conferências e encontraríamos algum líder de oposição em algum lugar para tomar conta do país, em um governo de transição até as eleições.
Agora, as autoridades americanas estão reconhecendo que o Iraque não pode ser tratado da mesma maneira.
A reconstrução do Iraque vai demandar muito tempo até que o país saia do caos e volte à normalidade. As Nações Unidas deveriam ter um papel muito importante nisso, pois está muito difícil convencer a todos que a administração Bush não está interessada apenas no petróleo iraquiano. Mesmo internamente, as pessoas têm essa suspeita.
Esse é um problema tremendo, pois entraremos no país sob a desconfiança da comunidade internacional, do público americano e dos próprios iraquianos -e não temos a menor idéia de como a população iraquiana se sente hoje.
Creio que eles não tenham boas suspeitas em relação aos motivos que nos estão levando a agir. Por isso a cooperação das Nações Unidas é crucial nesse processo.
Além disso, a reconstrução iraquiana deverá custar uma fortuna e seria bom termos outros países dispostos a dividir a conta.



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