|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ÁSIA
Começa amanhã, em Cabul, a Loya Jirga, reunião para definir o presidente interino do país e tentar apaziguar conflitos de poder
Assembléia inaugura reconstrução afegã
IGOR GIELOW
COORDENADOR DA AGÊNCIA FOLHA
Sete meses após a rendição do
Taleban, o Afeganistão começa
tudo de novo amanhã. Com a reunião da Loya Jirga, "grande conselho" na língua pashtu, o país
tenta equacionar os conflitos de
poder surgidos após a derrota da
milícia fundamentalista islâmica
que o governou por seis anos.
Mais que isso, o Afeganistão
tenta ter um governo de verdade
após 29 anos de golpes, invasões e
guerras. A data é arbitrária, contada a partir do golpe que derrubou
o ex-rei Mohammed Zahir Shah
do poder -o mesmo que, agora
com 87 anos, vai liderar a assembléia que começa amanhã na capital, Cabul.
""A comunidade internacional
espera um governo mais representativo. O papel do rei deverá
ser apenas simbólico, de união
nacional", disse à Agência Folha
Roland Dannreuther, diretor do
Departamento de Política da Universidade de Edimburgo (Escócia), especialista em Ásia Central.
A Loya Jirga é uma enorme assembléia, com 1.501 delegados,
que se reunirá para definir em sete dias de debates quem vai governar o país nos próximos 18 meses.
Nesse período, uma Constituição
terá de ser escrita e, após sua promulgação, eleições deverão ser
realizadas.
No papel, tudo foi acertado às
margens do rio Reno, em Bonn. O
acordo que leva o nome da ex-capital da Alemanha foi assinado
nessa cidade pelos principais líderes de facções afegãs no dia 5 de
dezembro, véspera da rendição
do Taleban.
O regime liderado pelo mulá
Mohammed Omar foi derrubado
após os ataques terroristas a Nova
York e Washington, em 11 de setembro de 2001. Estava instalado
no Afeganistão desde 1996, com a
bênção dos EUA -afinal de contas, trouxe estabilidade ao país
após conflitos sucessivos, da invasão soviética (1979-89) à guerra
civil (1992-94).
Mas, como abrigava o suspeito
número um dos atentados, o saudita Osama bin Laden, o Taleban
foi pressionado a entregá-lo. Não
o fez e acabou derrotado após os
bombardeios anglo-americanos e
o apoio ocidental a seus rivais da
Aliança do Norte.
Karzai
No ambiente pós-Bonn, foi instalado no poder Hamid Karzai,
com o apoio dos EUA. ""Homem
mais elegante do mundo", segundo gurus da moda, Karzai é um líder pashtu, principal etnia afegã.
Só que o governo interino, que
tomou posse em 22 de dezembro,
é dominado pela Aliança do Norte, que agrega em seu comando as
minorias tadjique e uzbeque. Em
especial a primeira, que domina
os três principais ministérios do
governo (Defesa, Interior e Relações Exteriores).
Com isso, surgiram críticas de
todos os lados e um novo inimigo
declarado, o ""senhor da guerra"
Gulbuddin Hekmatiar. Líder
pashtu com fortes ligações no Irã
durante a guerra contra a ocupação soviética, o ex-premiê Hekmatiar se exilou em Teerã fugido
do Taleban.
Ele é suspeito de ter planejado
um golpe de Estado em abril,
quando também houve o principal incidente do governo Karzai: o
atentado contra a comitiva do ministro Mohammad Fahim (Defesa) em Jalalabad, que acabou com
quatro mortos.
Desde então, Hekmatiar vem
sendo caçado. Segundo algumas
versões, ele teria sido atacado, no
oeste afegão, por um avião sem
piloto dos EUA.
Al Qaeda
Além disso, outra dor de cabeça,
os remanescentes do Taleban e da
Al Qaeda, rede liderada por Bin
Laden, estão se reagrupando.
Dos seus 50 mil homens antes
da campanha aérea dos EUA, entre outubro e dezembro passados,
cerca de mil foram presos. Entre
5.000 e 10 mil foram mortos, segundo levantamentos extra-oficiais de ONGs de Cabul, que colocam o número de vítimas civis entre 1.000 e 2.000 pessoas.
Semanalmente, os combatentes
que sobraram protagonizam algum incidente envolvendo os cerca de 12 mil soldados estrangeiros
em solo afegão -50% americanos. Até agora, 48 combatentes
dos EUA morreram na operação
(incluindo aí pessoal em navios e
aviões fora do Afeganistão), a
maioria deles em acidentes. Há
cerca de 20 vítimas entre outros
aliados.
Salvo contratempos, Hamid
Karzai, 44, natural de Candahar,
deverá sair da Loya Jirga como
entrou: presidente interino. Isso
porque, no dia 1º, ele recebeu o
apoio dos ministros tadjiques e
dos dois principais ""senhores da
guerra" afegãos, o uzbeque Abdul
Rashid Dostum e Ismail Khan,
tadjique que governa a Província
de Herat com mão-de-ferro.
""O desafio será montar uma estrutura de governo para o país.
Não sabemos se ele conseguirá",
afirmou o analista paquistanês
Zia Aziz, especialista na área.
Para tal montagem, o governo
está passando o chapéu. Espera
receber US$ 5 bilhões em cinco
anos, quase US$ 2 bilhões já em
2002.
Mais de 60 países e ONGs já
prometeram a ajuda, mas, por enquanto, o auxílio é compartimentado. Para sua força policial de 70
mil homens, por exemplo, está recebendo ajuda da Alemanha. Seu
Exército de 80 mil homens, se tudo der certo, terá treinamento
americano e armas russas.
Há esperanças de que a injeção
de capital revitalize a economia e
recrie o sistema bancário.
Até a idéia de construção de um
gasoduto de US$ 2 bilhões entre
as ricas reservas do Turcomenistão e o porto de Karachi, no Paquistão, voltou às discussões.
A obra sempre esteve no centro
de teorias de conspiração sobre a
ascensão do Taleban e os motivos
da ação regional dos EUA -que
teriam interesses porque buscam
alternativas energéticas ao conturbado Oriente Médio.
""É exagero. Nenhuma grande
empresa se interessou até agora, e
a situação de segurança é instável", afirma Dannreuther.
Dívida social
Até agora, Karzai só conseguiu
""segurar as pontas", ensaiando
uma abertura a investimentos externos enquanto lidava com alguma facção hostil.
Isso sem falar na dívida social
afegã, país com mortalidade infantil quatro vezes superior à do
Brasil, que passou os seis anos da
era Taleban sem o acesso universal à saúde e ao ensino. São quase
5 milhões de refugiados (de uma
população de cerca de 27 milhões) em países vizinhos, fora
milhões abaixo da linha da pobreza dentro de suas fronteiras.
Se ficar no poder, Hamid Karzai
terá de contar com o Ocidente para sua missão reconstrutora e a
manutenção da paz. Ao que tudo
indica, não será simples.
Texto Anterior: Só falta vontade política, diz diretor da FAO Próximo Texto: Armas estão proibidas na tenda da Loya Jirga Índice
|