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Pesquisador acredita que erros dos EUA e imaturidade política dos xiitas tenham causado onda atual de violência
É tarde para prender líder xiita, diz analista
JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL
O quadro caótico em que o Iraque mergulhou nos últimos dias
tem sobretudo como causa a inabilidade dos Estados Unidos, que
involuntariamente insuflaram a
liderança do líder radical xiita
Moqtada al Sadr.
Os EUA fecharam um de seus
jornais e se expuseram a protestos
às vésperas de uma de suas mais
importantes festas religiosas.
É o que disse em entrevista à Folha o israelense Amatzia Baram,
65, professor da Universidade de
Haifa e pesquisador do United
States Institute of Peace, organização independente financiada
pelo Congresso norte-americano.
A seu ver o conflito também
tem como origem a falta de cultura política da comunidade xiita, o
que a impede de fazer concessões
para que os grupos étnicos e religiosos do Iraque construam consensualmente uma plataforma
institucional da qual sairia um
país democrático. Eis os principais trechos da entrevista.
Folha - Como explicar a ascensão
tão rápida da liderança do xiita radical Moqtada al Sadr?
Amatzia Baram - Até há algumas
semanas ninguém poderia prever
essa ascensão. Mas já existiam sinais de que ele poderia se tornar
muito influente. Em Najaf, os sábios islâmicos formam um conselho encabeçado pelo aiatolá Ali al
Sistani. Há alguns meses os americanos informaram a esse conselho que Al Sadr se preparava para
desafiá-lo. Mas Al Sistani e seu
grupo não reagiram porque temiam Al Sadr e sua base de apoio,
sobretudo entre os xiitas mais pobres de Bagdá, que o ajudaram a
construir uma milícia armada e
tribunais que atuam como um Estado dentro do Estado.
Folha - Havia então o risco de um
confronto armado entre xiitas?
Baram -Al Sistani temia a milícia
xiita de Al Sadr, já que ele próprio
não possuía uma força militar organizada. Ou seja, Al Sistani não
queria o confronto.
Folha - A idéia de confronto então
partiu dos norte-americanos?
Baram - Exatamente. Mas dentro de um cronograma absolutamente inábil, que apenas acirrou
as tensões e levou ao atual impasse. Domingo [hoje] comemora-se
entre os xiitas o luto pelo 40º dia
após a morte de Hussein, uma das
duas datas mais importantes de
seu calendário religioso. É o Arbaeen. De 3 milhões a 4 milhões
de xiitas participam de peregrinações em Najaf, Karbala e no bairro
de Kazimiyeh, em Bagdá. É um
período de imensa emoção. O que
eu diria é que fechar o jornal de Al
Sadr alguns dias antes dessa festividade religiosa foi uma decisão
desastrosa [o "Al Hawza" foi fechado pelos americanos em 28 de
março, por incitação a atos de sabotagem contra a coalizão].
Folha - Há uma relação entre o fechamento do jornal e o assassinato
e a incineração de cadáveres de civis americanos?
Baram - Sem dúvida. Os incidentes trágicos de Fallujah já representam uma resposta dos radicais
xiitas. Em suma, o fechamento do
jornal e a proximidade do Arbaeen criaram uma situação explosiva da qual Moqtada al Sadr,
mesmo sem uma liderança muito
forte, soube tirar proveito.
Folha - Qual teria sido a melhor
alternativa para os EUA?
Baram - Eles deveriam ter fechado o jornal depois do Arbaeen, e
então, numa operação relâmpago, prender o grupo de Al Sadr e
neutralizá-lo política e militarmente. Agora seria muito tarde.
Folha - Como explicar que sunitas
e xiitas estejam excepcionalmente
atuando em ações conjuntas?
Baram - É muitíssimo incomum
que essa cooperação ocorra. É algo que começou de forma embrionária há seis ou sete meses. Eu
mesmo na época escrevi um artigo em que previa essa aliança. Estou, mesmo assim, surpreso com
a dimensão que essa atuação conjunta vem assumindo. Para os
EUA, isso é uma tragédia.
Folha - É algo que compromete o
cenário de implantar no país uma
democracia?
Baram - Acredito que seja justamente essa a intenção positiva e
generosa dos norte-americanos.
Mas esse projeto está por enquanto comprometido pelo consenso
crescente entre sunitas e xiitas de
que os americanos são um inimigo que precisa ser combatido.
Folha - Só os americanos são culpados pela atual situação?
Baram - Com certeza não é o caso. Há também, e sobretudo, a
imaturidade da cultura política
iraquiana. Depois de 35 anos sob
a ditadura de Saddam Hussein, é
difícil exigir de uma nação maturidade para negociar e fazer concessões. Os comportamentos são
de intransigência. Há um contraste no Iraque entre a responsabilidade e a maturidade dos curdos e
a irresponsabilidade e a imaturidade dos xiitas. Estes procuram
mobilizar por meio de apelos bem
mais religiosos que políticos.
Consideram cristãos e judeus como estatutariamente hostis.
Folha - Não haveria também o desapontamento com os rumos da
ocupação do Iraque?
Baram - Esse desapontamento
tem causas precisas. Os Estados
Unidos cometeram erros importante ao não terem uma política
de empregos e ao não saberem
como conversar com a população, apesar dos jornais, rádios e
TVs que controlam.
Folha - O sr. acredita que Al Sadr e
seus seguidores estavam por trás
do assassinato do aiatolá Khoei, em
abril do ano passado?
Baram - Creio que o grupo de Al
Sadr tenha sido responsável pelo
crime. Tão logo Khoei foi morto,
as milícias de Al Sadr cercaram a
casa de Al Sistani, seu sucessor,
ameaçando matá-lo. Mas Al Sistani foi salvo por um grupo de 500
líderes tribais xiitas.
Folha - Como analisar a hostilidade contra os americanos e não contra os britânicos, que controlam a
região do sul com mais xiitas?
Baram - Os britânicos foram
mais cautelosos. Mas não creio
que em Karbala e Najaf, cidades
da esfera americana, as pessoas
sejam fundamentalmente contra
os EUA. Se Al Sadr assumiu tão
facilmente o controle dessas cidades é porque a população não se
dispunha a lutar contra ele. E não
porque ela o apoiasse. Nessas cidades a liderança xiita reconhecida é a de Al Sistani.
Folha - O Conselho de Governo
Iraquiano, autoridade civil montada pelos EUA, poderia a esta altura
fazer alguma coisa?
Baram - O conselho não tem poder nenhum. A idéia dos americanos é fortalecê-lo. Mas como dar
ao conselho maior legitimidade se
seus integrantes não são eleitos?
Outra saída estaria em fazer com
que os membros do conselho fizessem concessões mútuas para
chegar a uma Constituição. Mas
os representantes xiitas nesse colegiado não têm liberdade de negociação porque Al Sistani não se
predispõe a concessões, a compromissos. Ele é um dos responsáveis pelo impasse.
Folha - Há hoje no Iraque 135 mil
militares americanos e 26,5 mil de
outras nacionalidades. Seria preciso uma presença militar ainda
maior para assegurar a ordem?
Baram - Eu sempre recomendo
negociações e creio que a repressão seja uma solução inadequada.
Mas o problema está na falta de
bases sobre as quais negociar. Nenhuma negociação teria chances
de sucesso sem que se desarme a
milícia de Al Sadr e se fechem seus
tribunais islâmicos, que prendem
e torturam, que determinam que
se jogue ácido no rosto das mulheres que não saem às ruas com a
cabeça coberta por um véu.
Folha - Caso pudesse dar um único conselho aos EUA, o que diria?
Baram - Eu os exortaria para que
construíssem uma nova coalizão,
que incluiria Al Sistani como um
líder xiita fortalecido. Os xiitas, no
Conselho de Governo, também
são representados pelo Partido
Dawa e por Abdel-Aziz al Hakim.
O roteiro só se comprometeria se
esses xiitas mais moderados se recusassem a neutralizar Al Sadr.
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