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São Paulo, domingo, 11 de maio de 2003

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Com dois candidatos absolutamente díspares, a confusão de sempre do peronismo volta à cena política

Menem e Kirchner são como água e vinho

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

Os dois candidatos que disputam o segundo turno da eleição presidencial argentina no próximo domingo são peronistas. Na origem, ambos são seguidores do general Juan Domingo Perón, três vezes presidente da Argentina e a figura dominante na política local durante a segunda metade do século passado.
Os dois postulantes à Casa Rosada, sede do governo, fizeram carreira política a partir de Províncias remotas e de escassa influência nacional.
O ex-presidente Carlos Saúl Menem, 72, que já exerceu dois mandatos presidenciais nos anos 90 e tentar retornar ao cargo agora, é da Província de La Rioja, no noroeste da Argentina, com apenas 1,7% do eleitorado do país.
Néstor Carlos Kirchner, 53, é de Santa Cruz, no extremo sul do país, com somente 0,5% do eleitorado nacional.
Ambos têm ou tiveram um laço com o atual presidente, o também peronista Eduardo Duhalde, que chegou à Presidência em janeiro de 2002, pouco depois da renúncia de Fernando de la Rúa, da UCR (União Cívica Radical).
Duhalde foi vice-presidente de Menem, em parte da primeira gestão, iniciada em 1989 (depois saiu para disputar a Província de Buenos Aires).
Kirchner foi o candidato escolhido por Duhalde para enfrentar Menem, transformado em 2003 em inimigo mortal de seu ex-companheiro de fórmula.

Confusão ideológica
Apesar dessas coincidências, o fato é que os dois homens que disputam o poder no domingo que vem são mais diferentes do que água e vinho.
Menem é o candidato da ortodoxia, do liberalismo, dos mercados.
Kirchner seria, no Brasil, rotulado de "desenvolvimentista" ou de centro-esquerda, se se preferir uma classificação universal.
Mas não se trata de que tenham, com o tempo, mudado suas convicções originais e, por isso, se distanciado.
Trata-se, apenas, da confusão ideológica que o peronismo sempre carregou, capaz de abrigar extremos.
Ao voltar ao poder, em 1973, o general Perón tinha a seu lado tanto a Triple A, o esquadrão da morte fascistóide que eliminava inimigos, como os Montoneros, grupo armado de ultra-esquerda, dizimado depois pela ditadura militar (1976-83).
Kirchner, de algum modo, é filho dessa segunda vertente. Pertenceu à Jotapé (JP, de Juventude Peronista), uma espécie de vestimenta política para os Montoneros.
Por isso mesmo, esteve duas vezes preso, por breve período, após o golpe de 1976, bem como sua mulher, a hoje senadora Cristina Fernández.
Menem, ao contrário, pertence ao mais clássico figurino populista, de que o peronismo foi o modelo mais acabado (e mais bem-sucedido, enquanto pôde) na América Latina.
Tão populista que criou uma moeda própria quando administrou La Rioja, Província em que continua tão formidavelmente popular que levou 81% dos votos no primeiro turno.
Não obstante Menem também esteve preso durante a ditadura e por bem mais tempo que Kirchner, primeiro no navio 33 Orientales e depois em três diferentes presídios.
Por que figuras já tão díspares tiveram idêntico tratamento durante o regime militar?
Porque os militares argentinos odeiam (ou odiavam) o general Perón justamente por ele ter aberto aos trabalhadores as portas da participação política, então restrita aos patrícios de uma Argentina europeizada.
Fica natural, então, que um estudante (e peronista), como Kirchner, e um governador (e peronista), como Menem, passem a ser igualmente suspeitos, ainda mais que sobre este pesava (como pesa até hoje) a sombra de denúncias de corrupção.
No fundo, a eleição de domingo que vem reproduz uma situação que causava perplexidade e discórdia há 30 anos quando Perón era presidente.
Um dia, a esquerdista mas peronista Jotapé foi procurá-lo em sua casa no elegante subúrbio de Vicente López, na zona Norte de Buenos Aires. Disseram-lhe: "Mi general, seu governo está cheio de corruptos e fascistas".
Perón: "Ah, meus filhos, se nos uníssemos apenas aos bons seríamos tão poucos".
No primeiro turno das eleições presidenciais, os peronistas não foram poucos (três candidatos, que, juntos, levaram cerca de 60% dos votos).
Qual deles é "bom" e qual deles é "ruim", ficou para ser decidido no próximo dia 18, embora as pesquisas de opinião apontem com muita nitidez para Kirchner como "bom" aos olhos da maioria dos pesquisados.


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