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Com dois candidatos absolutamente díspares, a confusão de sempre do peronismo volta à cena política
Menem e Kirchner são como água e vinho
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
Os dois candidatos que disputam o segundo turno da eleição
presidencial argentina no próximo domingo são peronistas. Na
origem, ambos são seguidores do
general Juan Domingo Perón, três
vezes presidente da Argentina e a
figura dominante na política local
durante a segunda metade do século passado.
Os dois postulantes à Casa Rosada, sede do governo, fizeram
carreira política a partir de Províncias remotas e de escassa influência nacional.
O ex-presidente Carlos Saúl Menem, 72, que já exerceu dois mandatos presidenciais nos anos 90 e
tentar retornar ao cargo agora, é
da Província de La Rioja, no noroeste da Argentina, com apenas
1,7% do eleitorado do país.
Néstor Carlos Kirchner, 53, é de
Santa Cruz, no extremo sul do
país, com somente 0,5% do eleitorado nacional.
Ambos têm ou tiveram um laço
com o atual presidente, o também
peronista Eduardo Duhalde, que
chegou à Presidência em janeiro
de 2002, pouco depois da renúncia de Fernando de la Rúa, da
UCR (União Cívica Radical).
Duhalde foi vice-presidente de
Menem, em parte da primeira
gestão, iniciada em 1989 (depois
saiu para disputar a Província de
Buenos Aires).
Kirchner foi o candidato escolhido por Duhalde para enfrentar
Menem, transformado em 2003
em inimigo mortal de seu ex-companheiro de fórmula.
Confusão ideológica
Apesar dessas coincidências, o
fato é que os dois homens que disputam o poder no domingo que
vem são mais diferentes do que
água e vinho.
Menem é o candidato da ortodoxia, do liberalismo, dos mercados.
Kirchner seria, no Brasil, rotulado de "desenvolvimentista" ou de
centro-esquerda, se se preferir
uma classificação universal.
Mas não se trata de que tenham,
com o tempo, mudado suas convicções originais e, por isso, se
distanciado.
Trata-se, apenas, da confusão
ideológica que o peronismo sempre carregou, capaz de abrigar extremos.
Ao voltar ao poder, em 1973, o
general Perón tinha a seu lado
tanto a Triple A, o esquadrão da
morte fascistóide que eliminava
inimigos, como os Montoneros,
grupo armado de ultra-esquerda,
dizimado depois pela ditadura
militar (1976-83).
Kirchner, de algum modo, é filho dessa segunda vertente. Pertenceu à Jotapé (JP, de Juventude
Peronista), uma espécie de vestimenta política para os Montoneros.
Por isso mesmo, esteve duas vezes preso, por breve período, após
o golpe de 1976, bem como sua
mulher, a hoje senadora Cristina
Fernández.
Menem, ao contrário, pertence
ao mais clássico figurino populista, de que o peronismo foi o modelo mais acabado (e mais bem-sucedido, enquanto pôde) na
América Latina.
Tão populista que criou uma
moeda própria quando administrou La Rioja, Província em que
continua tão formidavelmente
popular que levou 81% dos votos
no primeiro turno.
Não obstante Menem também
esteve preso durante a ditadura e
por bem mais tempo que Kirchner, primeiro no navio 33 Orientales e depois em três diferentes
presídios.
Por que figuras já tão díspares
tiveram idêntico tratamento durante o regime militar?
Porque os militares argentinos
odeiam (ou odiavam) o general
Perón justamente por ele ter aberto aos trabalhadores as portas da
participação política, então restrita aos patrícios de uma Argentina
europeizada.
Fica natural, então, que um estudante (e peronista), como
Kirchner, e um governador (e peronista), como Menem, passem a
ser igualmente suspeitos, ainda
mais que sobre este pesava (como
pesa até hoje) a sombra de denúncias de corrupção.
No fundo, a eleição de domingo
que vem reproduz uma situação
que causava perplexidade e discórdia há 30 anos quando Perón
era presidente.
Um dia, a esquerdista mas peronista Jotapé foi procurá-lo em sua
casa no elegante subúrbio de Vicente López, na zona Norte de
Buenos Aires. Disseram-lhe: "Mi
general, seu governo está cheio de
corruptos e fascistas".
Perón: "Ah, meus filhos, se nos
uníssemos apenas aos bons seríamos tão poucos".
No primeiro turno das eleições
presidenciais, os peronistas não
foram poucos (três candidatos,
que, juntos, levaram cerca de 60%
dos votos).
Qual deles é "bom" e qual deles
é "ruim", ficou para ser decidido
no próximo dia 18, embora as
pesquisas de opinião apontem
com muita nitidez para Kirchner
como "bom" aos olhos da maioria dos pesquisados.
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