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Bagdá vira cidade dos mortos-vivos
Saques e destruição desfiguram capital, que ainda não foi totalmente dominada pelos EUA
SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A BAGDÁ
O farol dos carros ilumina os
rostos das pessoas que vêm andando em sentido contrário na
escuridão das ruas. Assustadas
primeiro, desafiadoras depois,
elas tentam cobrir os olhos com as
costas das mãos, mas não conseguem esconder o que trazem consigo, geralmente em carrinhos de
mão, charretes humanas e porta-malas adaptados em bicicletas: o
produto de saques feitos em prédios públicos, palácios, sedes de
ministérios, embaixadas e casas e
clubes da pequena elite que cercava o regime de Saddam Hussein
até a última quarta-feira.
Um garoto de 20 anos puxa uma
máquina de xerox retirada de um
dos principais palácios do ex-ditador iraquiano, que trazia quatro
bustos gigantes em cada canto da
construção. Metros adiante, um
homem de cerca de 40 anos empurra uma cadeira de escritório
com rodinhas ainda no plástico,
recuperada dos escombros do
prédio ao lado do escritório do ex-vice-primeiro-ministro Tariq
Aziz, bombardeado pelo menos
seis vezes desde o começo da
guerra. Uma menina enche caixas
de papelão com pratos, talheres e
copos tirados da cozinha do semi-ereto hotel Al Mansur.
É noite em Bagdá, a primeira
em que está valendo o toque de
recolher imposto pela coalizão
anglo-americana, anteontem.
Não há energia elétrica na cidade
há quase uma semana, não existe
Estado há pelo menos três dias e
só na sexta marines passaram a
fazer a segurança de locais públicos como hospitais e escolas.
Ainda assim, centenas de bagdalis aproveitam a ausência de
luz, o vácuo do poder e o fim de
quase três décadas de ditadura
para ir à forra. Mesmo no contexto da guerra, é outra cidade.
Para quem chega de fora agora,
a percepção é de que mortos-vivos tomaram tudo e agora caminham entre escombros e destruição. São cenários em ruínas, como o da ponte 14 de Julho, que liga as duas margens do rio Tigre
bem no centro da cidade.
No chão, perto da entrada do
que um dia foi do Ministério do
Planejamento, hoje perfurado por
bombas e mísseis, a estátua de
Saddam vestido de líder tribal
árabe está estatelada no chão.
Há um Passat branco com a
porta e os bancos dianteiros manchados de sangue e o que restou
de uma BMW azul-marinho 2002
com as quatro rodas apoiadas em
blocos de concreto. O primeiro foi
metralhado por marines norte-americanos assustados com a
possibilidade cada vez mais presente dos homens-bomba (mas
este era apenas um civil); o segundo estava na garagem de uma embaixada abandonada às pressas
antes do dia 20 de março, quando
tudo começou.
Em três ou quatro pontos da cidade, em bairros ainda dominados pelos soldados da Guarda Republicana fiéis ao antigo regime
ou pelos fedayin, ainda queimam
tambores de petróleo.
15 horas, US$ 1.500
A volta da Folha à capital iraquiana dez dias depois consumiu
15 horas e US$ 1.500, o preço médio agora cobrado pelos motoristas para fazer a rota Amã-Bagdá.
Se antes a inflação era justificada
pelos bombardeios constantes,
agora são os saques os culpados.
Realmente, ao longo dos 600
quilômetros que ligam Trebil, na
fronteira jordaniana, ao centro da
cidade há relatos recentes de grupos armados parando comboios
de viajantes e levando tudo, até
roupas e documentos. A segurança é precária, pois a coalizão só
controla alguns pontos. A começar da alfândega, abandonada pelos funcionários iraquianos na
manhã de quarta-feira, saqueada
e semidestruída durante as horas
seguintes e finalmente invadida
por marines anteontem.
No escritório central abandonado, um dos dez que antes o viajante era obrigado a passar até ganhar o direito de entrar no Iraque,
um retrato de Saddam Hussein
jaz aos pedaços no chão, ao lado
de uma de suas frases, ditas numa
visita ao local poucos meses antes:
"Estou feliz agora porque há alguém na fronteira de Trebil fazendo sua missão".
Não mais. Quem faz a missão
agora é o soldado Smiley, de calção e barba rala, um dos dez que
se dividem na função de checar os
passaportes de quem entra, auxiliados por dois tanques e dois caminhões-tanques. Vistos não são
mais necessários e portadores de
documentos iraquianos, iranianos e sírios são chamados de lado
para um interrogatório mais extenso. Vencida a burocracia, a
coalizão vai aparecer apenas em
mais um posto de checagem, 250
quilômetros para a frente.
Mas rastros de sua passagem estarão pela viagem inteira, na forma de veículos militares iraquianos destruídos, queimados ou
simplesmente desarmados e largados no acostamento. É perto da
capital, porém, que a guerra em
progresso se faz mais presente.
A começar pelo cheiro. Foram
3.000 soldados iraquianos mortos
apenas numa das batalhas para a
tomada do aeroporto, a maioria
deles ainda insepulta. Se o vento
está vindo da direção de Bagdá,
como na noite de sexta, é insuportável seguir de janelas abertas.
Além disso, há carros, civis e
militares, destruídos às dezenas,
assim como ônibus municipais e
escolares. Pequenos incêndios
provocados pela população, em
lugares como a delegacia distrital,
o escritório da estatal de petróleo
ou a sede local do partido Baath,
continuam fumegando.
Olhando tudo, gigantescos, dezenas e dezenas de tanques norte-americanos, espalhados por todas
as vias de acesso, pelas pontes e fazendo as barreiras dos postos de
checagem. No céu, comboios de
helicópteros cuidam de espalhar
mais o cheiro. A guerra em Bagdá
ainda não acabou.
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