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SOCIEDADE
Atentados de 11 de setembro contra os EUA motivam discussão de questões consideradas delicadas até agora
Arábia Saudita repensa sua relação com o Ocidente
NEIL MACFARQUHAR
DO "THE NEW YORK TIMES", EM JIDDA
Movida pelos ataques de 11 de
setembro nos Estados Unidos, está começando a acontecer na sociedade saudita uma discussão
cautelosa sobre a intolerância em
relação aos não-muçulmanos e
sobre as atitudes em relação ao
Ocidente, algumas das quais começam a ser vistas como inspiradoras de uma violência inaceitável. A discussão parece representar uma mudança significativa
numa sociedade que tende a ver
tais questionamentos como tabu.
Basta mencionar em praticamente qualquer ambiente repleto
de pessoas aqui que 15 dos 19 sequestradores envolvidos nos
atentados eram sauditas, e as negações continuam a jorrar. Não
há provas concretas nesse sentido, acrescentando que, mesmo
que Osama bin Laden, saudita, tenha de fato tido algum envolvimento com os ataques, ele deve
ter sido induzido ao erro pelos
egípcios radicais que o cercam.
Mas algumas rachaduras começam a aparecer nessa fachada de
negação. Um pequeno grupo de
intelectuais, acadêmicos, jornalistas e doutores em religião vem sugerindo, sem alarde, que é chegada a hora de fazer algumas mudanças. "Precisamos olhar de
frente para muitas coisas que pensávamos ser normais", disse Khaled M. Batarfi, editor administrativo do diário "Al Madina", que
procura ampliar os limites do que
é possível publicar no país. "Precisamos analisar as opiniões que
resultaram nessas ações negativas
e ver se estão erradas, ou se foram
apenas tomadas fora de contexto.
Antes de 11 de setembro, dizer
"acho que devemos odiar os outros" não passava de uma opinião.
Depois dessa data, descobrimos
que alguns desses pensamentos
resultaram em ações que nos prejudicaram, na medida em que levaram todos os muçulmanos a serem postos no banco dos réus."
Posturas como a dele ainda são
vistas como polêmicas. Quando
dezenas de acadêmicos e estudiosos de religião sauditas lançaram
um manifesto sugerindo que os
muçulmanos talvez possam encontrar algo em comum com o
Ocidente, tornaram-se alvo das
críticas acirradas dos setores que
aceitam a idéia de que o islã se fortalece com a hostilidade em relação aos infiéis.
"Vocês criam a falsa impressão
de que muita gente condenou a
guerra contra a América", disse
uma dessas críticas divulgada em
um site. "Mas a verdade é que
muitas pessoas ficaram felizes em
declarar esta guerra, que proporcionou aos muçulmanos um sentimento de alívio."
Em outro site, o xeque Hamad
Rais al Rais, um estudioso idoso e
cego, comentou que os redatores
do manifesto deram mostras de
solidariedade demais para com as
vítimas de 11 de setembro e aviltaram o islã, ao deixarem de mencionar que a guerra santa ainda é
um dos seus princípios básicos.
"Vocês choram pelo que aconteceu com os americanos em seus
mercados, escritórios e ministérios, além dos desastres que eles
viveram", ele escreveu, "e esquecem a opressão, a injustiça e as
agressões impostas pelos mesmos
americanos ao mundo islâmico."
Diversos fatores vêm alimentando essa discussão. Desde 11 de
setembro, a monarquia reduziu
um pouco a repressão movida à
livre expressão. Além disso, um
incêndio fatal ocorrido numa escola feminina em Meca trouxe à
tona alguns dos custos internos
da opinião extremista, quando
alunas do colégio teriam morrido
porque os bombeiros foram impedidos de socorrê-las porque
elas não estariam adequadamente
cobertas com véus.
Em junho, o governo anunciou
a prisão de integrantes de uma célula da rede Al Qaeda, depois de a
família real ter passado meses negando que a rede tivesse quaisquer defensores no país.
Mas qualquer discussão aberta
ainda terá de superar obstáculos
consideráveis, entre os quais os
ataques imediatos do clero de linha dura e de outros estudiosos
de influência considerável.
A xenofobia domina as discussões religiosas de maneira não encontrada em nenhum outro lugar
no mundo islâmico.
As livrarias nas cidades santas
de Meca e Medina, por exemplo,
vendem um volume de 1.265 páginas de recordações da região
que é uma espécie de catálogo dos
"maiores sucessos" em termos de
fatwas referentes à vida moderna.
O livro é repleto de normas de
conduta e proibições relativas a
não-muçulmanos: não sorria para eles, não lhes deseje o bem em
suas férias, não se dirija a eles como "amigo".
Uma fatwa [decreto religioso]
emitida pelo xeque Muhammad
bin Othaimeen, cujo funeral, no
ano passado, atraiu centenas de
milhares de pessoas, discute se o
bom muçulmano pode ou não viver em terras infiéis. "O fiel que
for obrigado a viver no exterior
deve alimentar a inimizade e o
ódio pelos infiéis e evitar fazer deles seus amigos", diz parte da sentença. Os sauditas de modo geral,
e os príncipes mais velhos em especial, rejeitam a idéia de que esse
tipo de ensinamento possa ajudar
a fomentar o surgimento de terroristas. "É claro que eu o odeio
-você é cristão", explica um professor de direito islâmico em Riad
a um jornalista. "Mas isso não significa que eu queira matá-lo."
O príncipe Sattam bin Abel Aziz
-que, aos 61 anos, é um dos irmãos mais jovens do rei Fahd e há
anos o vice-governador de
Riad- conduz audiências num
gabinete do tamanho de metade
de um campo de futebol. As paredes são de pedra branca, e o carpete traz motivos beduínos modernos -faixas de triângulos e
outras formas geométricas executadas em azul e rosa. Indagado sobre fatwas como as acima mencionadas, o príncipe responde:
"Não se pode dizer que essas pessoas representem o islã". Para
exemplificar sua tolerância, menciona que estudou numa universidade católica em San Diego.
"Não estou dizendo que não
existam extremistas na Arábia
Saudita, mas não são tantos quanto as pessoas imaginam ou que a
imprensa mostra", diz ele, levando a conversa de volta aos atentados do dia 11 de setembro. "Dizem que os 15 que fizeram isso são
sauditas. Mas eles estavam no
Afeganistão. Criaram suas idéias
fora da Arábia Saudita."
Essa é, sem dúvida, a visão prevalecente aqui, apesar da percepção generalizada que se tem, fora
da Arábia Saudita, de que Bin Laden procura usar ensinamentos
comuns no país para justificar as
posturas violentamente antiocidentais de sua organização, a Al
Qaeda. Mas alguns empresários,
intelectuais e religiosos sauditas
acham que o clero de fato fomenta a intolerância.
Um executivo de Jidda diz, falando do clero saudita: "Se você é
contra os clérigos, é contra o islã.
Se os critica, está criticando o islã". Por esse motivo, ninguém ousa argumentar diretamente contra os ensinamentos.
Tradução de Clara Allain
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