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EUA
"Líderes religiosos precisam ouvir a verdade", diz David Clohessy, diretor da Rede de Sobreviventes de Abusos por Padres
Vítima de abuso pede reforma na igreja
PAULO DANIEL FARAH
DA REDAÇÃO
A Igreja Católica precisa de reformas para evitar novos escândalos sexuais envolvendo padres
como os que vieram à tona nos últimos meses, sobretudo nos EUA.
A afirmação é de David Clohessy, 46, diretor da Rede de Sobreviventes de Abusos por Padres, fundada em 1989 e que conta
com cerca de 4.400 membros nos
Estados Unidos atualmente.
"Os líderes religiosos precisam
ouvir os leigos e ouvir toda a verdade. Isso é como uma infecção.
nenhum médico diz a um paciente: "Vamos limpar 20% ou 60% de
sua infecção e esperar o melhor".
A cura só acontece realmente
quando a infecção inteira é tratada", argumenta Clohessy.
Dos 11 aos 16 anos, Clohessy foi
vítima de abusos sexuais, cometidos por um padre que ganhou a
confiança da família e passou a levá-lo em viagens. "Costumava ficar em posição fetal chorando
histericamente", diz ele.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista que Clohessy
concedeu à Folha, por telefone, de
St. Louis.
Folha - Como o sr. avalia a renúncia, anunciada anteontem, do cardeal Bernard Law, responsável pela Arquidiocese de Boston, a mais
atingida no escândalo de pedofilia
na Igreja Católica dos EUA?
David Clohessy - Creio que ainda
haja muito o que fazer, mas espero que isso ajude de alguma maneira as vítimas a se sentirem um
pouco aliviadas. Ao mesmo tempo, as pessoas compreendem claramente que o problema não é
Law. Os abusos sexuais de crianças são algo muito mais profundo
do que representa um homem ou
uma arquidiocese .
Folha - Por que o papa autorizou
a renúncia desta vez?
Clohessy - Ele simplesmente não
tinha outra opção. Foi a segunda
vez que Law pediu para abandonar o posto [em abril, ele já havia
tentado". Com toda essa pressão,
o papa não tinha alternativa. Não
creio que a oferta de Law ou a
aceitação por parte do papa simbolize qualquer mudança.
Folha - O que o sr. espera que a
Igreja Católica faça para lidar com
o problema?
Clohessy - Mais do que tudo, os
líderes religiosos precisam ouvir
os leigos e ouvir toda a verdade.
Isso é como uma infecção. Nenhum médico diz a um paciente:
"Vamos limpar 20% ou 60% de
sua infecção e esperar o melhor".
A cura só acontece realmente
quando a infecção inteira é tratada. Os processos criminais em
Boston e em outros lugares têm
de continuar para que haja realmente uma cura.
De qualquer modo, o importante é remover todos os padres acusados de abusos de crianças, contratar profissionais independentes para conduzir as investigações, anunciar publicamente o
nome de padres considerados
culpados, garantir terapia às vítimas de abusos, promover programas de prevenção em escolas e seminários e organizar "domingos
de prevenção", nos quais cada padre explique aos pais que eles devem discutir a questão com seus
filhos e convencê-los da importância de denunciar os infratores.
Folha - A Arquidiocese de Boston
está analisando a possibilidade de
entrar em falência por causa dos
processos que vem enfrentando.
Clohessy - Não creio que isso seja
necessário. A não ser que a igreja
abra seus arquivos, não temos como saber qual é sua situação financeira. Nos últimos 15 ou 20
anos, pelo menos 15 dioceses
ameaçaram entrar em falência.
Na maioria das vezes, isso foi feito
para desestimular vítimas de procurar a Justiça.
Folha - Por que em geral as vítimas levam tanto tempo para procurar a Justiça?
Clohessy - Há diversos fatores.
Muitas vítimas se sentem culpadas e envergonhadas pelo que
aconteceu. Em geral, nós acreditamos que sejamos as únicas vítimas e que o padre vai obter ajuda.
Além disso, os líderes religiosos
nos encorajam a silenciar sobre o
assunto. Com frequência, as denúncias levam anos para acontecer por causa da gravidade do
trauma e da posição social do
ofensor. Além disso, algumas vezes os sobreviventes não compreendem que estão sendo vítimas de um crime. São crianças
que, muitas vezes, não têm noção
do mal que lhes foi imposto.
Folha - O sr. usa o termo "sobrevivente" para reforçar a gravidade
do abuso? Alguém já morreu por
causa disso?
Clohessy - Sim, infelizmente algumas vítimas não suportam o
trauma e se suicidam.
Folha - Não há perigo de casos
falsos?
Clohessy - Sim, mas esse perigo é
extremamente pequeno. Só há
duas coisas piores do que acusar
falsamente alguém. Uma é sofrer
abuso sexual e a outra é sofrer
abuso e ser ignorado.
Folha - O sr. foi vítima de abusos
sexuais?
Clohessy - Sim, no Missouri.
Folha - O sr. sabe onde está o padre que cometeu esses abusos?
Clohessy - Ninguém sabe onde
ele vive. Desde que eu abri um
processo, ele sumiu, e a igreja insiste em que não conhece seu paradeiro.
Folha - Quantos anos o sr. tinha?
Clohessy - Sofri abusos dos 11
aos 16 anos.
Folha - Como ele se aproximou do
sr. e o que fez?
Clohessy - Ele se tornou amigo
de minha família e passou a ser
convidado para o jantar ou para
uma visita de final de semana...
Depois, pediu que eu atuasse mais
na igreja, levou-me com ele em algumas viagens, para acampar, navegar ou esquiar nas férias...
Folha - O sr. teve medo de contar
à família?
Clohessy - Sim, eu tentava reprimir as recordações.
Folha - Que tipo de abuso ele cometeu?
Clohessy - Muitas coisas. Fui
abusado, sodomizado. Ele costumava abusar de mim à noite,
quando estávamos sozinhos,
quando eu estava dormindo ou
quando estava prestes a dormir.
Eu acordava de manhã e era como
se eu não me lembrasse de nada.
Eu não dizia nada porque eu não
conseguia... Mais tarde, costumava ficar em posição fetal chorando
histericamente enquanto me lembrava do que havia acontecido.
Folha - A maioria dos padres comete os abusos longe da igreja?
Clohessy - Acontecem em muitos lugares, às vezes até na igreja.
Mas o padrão mais comum é os
padres se aproximarem da família, virarem amigos dela e depois
abusarem da criança. Eles não
chegam um dia e rasgam a roupa
da criança. Isso é extremamente
raro. Normalmente, é muito mais
sutil. Vários desses padres são
muito carismáticos, populares e
gentis. E é justamente por isso que
os pais confiam tanto neles.
Folha - Qual é a situação nos EUA
atualmente?
Clohessy - A situação é muito
mais grave do que qualquer um
possa imaginar.
Folha - Quantos padres estão sendo processados nos EUA?
Clohessy - Entre 4% e 8% dos padres cometeram abusos sexuais,
mas um número muito menor está sendo processado. Ao menos
330 padres norte-americanos foram removidos de seu posto ou
renunciaram neste ano. Em apenas um Estado, o Kentucky, que
não é muito grande, há pelo menos 200 ações judiciais.
Folha - Quais as principais atividades que a Rede de Sobreviventes
de Abusos por Padres promove?
Clohessy - Acima de tudo, oferecemos apoio às vítimas. Nosso
objetivo é garantir um lugar seguro onde as pessoas possam conversar, receber apoio e encorajamento. Temos grupos em 30 cidades dos EUA, onde as pessoas podem conversar em segurança.
Folha - O fim da obrigatoriedade
do celibato clerical na Igreja Católica poderia ajudar a reduzir o problema, em sua opinião?
Clohessy - Creio que sim, mas
não como uma ação isolada. A
obrigatoriedade do celibato clerical leva a toda uma cultura secreta. Falando de forma direta, ninguém pode praticar sexo com
ninguém, e muitos homens acabam fazendo as coisas em segredo. Por causa desse segredo, eles
não pensam em chamar a polícia
ou fazer uma denúncia contra um
outro colega que também faz suas
coisas em segredo e que abusa de
uma criança. Sou contra a obrigatoriedade do celibato clerical, mas
não creio que ela explique os casos de pedofilia.
Folha - Quão comuns são esses
acordos que oferecem dinheiro a
vítimas de abusos em troca do silêncio delas?
Clohessy - Ainda são muito comuns, infelizmente. É muito difícil alguém reconhecer que tenha
sido vítima de um crime sexual,
especialmente se estivermos falando de um homem. Creio que
muitos desses criminosos tentam
fazer sua vítima se sentir responsável. E eles conseguem fazê-las se
sentirem assim.
Folha - A maioria das vítimas são
homens?
Clohessy - A maioria das pessoas
acredita que homens sofram mais
abusos que mulheres, mas o número é mais ou menos o mesmo.
Metade dos membros de nossa
rede é homem e metade é mulher.
Folha - Qual é a sua opinião sobre
Richard Lennon, que vai substituir
Law temporariamente à frente da
Arquidiocese de Boston?
Clohessy - Não o conheço muito
bem, mas, de qualquer forma, não
creio que faça muita diferença. A
cultura e a estrutura da igreja é
que precisam de reforma.
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