São Paulo, domingo, 20 de julho de 2008

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Relegado a segundo plano, Afeganistão atola no caos

Violência cresce e Taleban recrudesce em colcha de retalhos étnica que mina estrutura estatal

Cenário convulso já envolve vizinhos Paquistão e Índia, todos aliados dos EUA em região crucial para a "guerra contra o terror" de Bush


JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Em março deste ano o jornal canadense "Globe and Mail" entrevistou 42 combatentes do Taleban, grupo radical islâmico no poder no Afeganistão entre 1996 e 2001 e hoje reconvertido à guerrilha. Indagados sobre a motivação para combater, 12 responderam que queriam vingar a morte de familiares em bombardeios da Otan, a aliança militar ocidental. E 21 disseram que era para recuperar suas plantações de papoula, destruídas pelas operações americanas antidrogas.
A ONU calcula que em 2007 cerca de 1.500 civis foram mortos em bombardeios, 50% a mais que no ano anterior. Quanto às papoulas, matéria-prima da heroína, a área plantada em 2007 foi superior em 57% à de 2006. Ela representa US$ 3,1 bilhões para a economia afegã, ou praticamente a metade do PIB (total da riqueza produzida no país).
Os Estados Unidos estão perdidos num intricado labirinto desde que, após o 11 de Setembro, comandaram a operação militar para desalojar o Taleban e enfraquecer a Al Qaeda.
Bombardeando áreas controladas pelo Taleban e destruindo campos de papoulas, indiretamente estimulam o recrutamento de terroristas.
Nos últimos dois meses, morrem no Afeganistão mais militares americanos que no Iraque. O Taleban sai lucrando por causa dos acordos que o governo paquistanês fechou com lideranças tribais na fronteira com o Afeganistão.
A fronteira, em verdade, é uma linha geográfica inventada pelos ocidentais. O Afeganistão foi criado pelo governo britânico, do qual se tornou independente em 1919. Ao sul ficava a porção islâmica e ocidental da Índia, que se separou em 1947 e se tornou o Paquistão. Mas dos dois lados da fronteira o que existe é a etnia pashtun.
A União Soviética invadiu o Afeganistão (1979-1989) e tentou construir um Estado laico. Foi derrotada. As estruturas tribais, arcaicas e misóginas, sentiam-se tão agredidas quanto se sentem agora com a presença de militares ocidentais.
No mês passado o "Financial Times" publicou curto ensaio de Anatol Lieven, especialista em guerras no King's College de Londres. Ele acredita que o sonho da construção da democracia no Afeganistão está morto, e que a melhor coisa que poderia acontecer aos ocidentais seria finalmente capturar Osama bin Laden, gritar "vitória!" e deixar rapidamente o país.
O presidente Hamid Karzai, pró-americano eleito em 2004, pediu recentemente US$ 50 bilhões para nos próximos anos construir um país de verdade. O Afeganistão, que antes do 11 de Setembro recebia US$ 100 milhões ao ano de ajuda externa, recebe hoje US$ 2,5 bilhões. Já construiu 4.000 km de estradas e multiplicou por seis o número de crianças em escolas.
Mas burocracia e a corrupção são endêmicas. A Integrity Watch Afghanistan diz que, para cada US$ 100 entregues, só US$ 45 chegam às pessoas.
Quanto à questão militar, o quadro é simples. O Taleban controla áreas inteiras do país, e o governo está na defensiva. Os Estados Unidos e a França enviaram reforços. O Canadá já anunciou que retirará seus homens em 2011.

Vizinhança
Quanto ao vizinho Paquistão as coisas estão também complicadas. O governo americano investiu US$ 10 bilhões a partir de 2001 para que o ditador Pervez Musharraf combatesse o terrorismo. Mas interessava à administração Bush redemocratizar o país.
A peça-chave era a ex-premiê Benazir Bhutto. Mas ela foi assassinada em dezembro. Seu partido ganhou em fevereiro as eleições. O premiê, Yousaf Raza Gilani, isolou Musharraf na chefia do Estado e negociou uma trégua com Baitullah Mehsud, líder dos clãs do Waziristão do Sul.
Com a trégua, os atentados no vizinho Afeganistão aumentaram em 40%. O Taleban era o grande beneficiado. Dana Perino, porta-voz da Casa Branca, afirmou na época que acordos assim beneficiam terroristas.
A menor agressividade nas fronteiras é também defendida pelo novo chefe do Exército paquistanês, general Ashfaq Parvez Kayani. Ele e o premiê Gilani querem uma política amistosa com os extremistas para não engrossarem o caldo do radicalismo islâmico latente nas regiões urbanas paquistanesas. Há o exemplo de 2007, com o massacre da Mesquita Vermelha, em Islamabad, em que podem ter morrido até 2.000.
Essa política prejudica o Afeganistão e enfurece os Estados Unidos. Mas, no fundo, interessa ao Paquistão ter um regime afegão fraco e com confusões espasmódicas. Com isso, pode concentrar sua atenção militar na fronteira com a Índia, inimiga histórica com a qual já disputou três guerras, em resposta à qual também construiu a bomba atômica e com a qual disputa o território da Caxemira.
É com base nesse mesmo jogo triangular de interesses que a Índia se empenha na tarefa de fortalecer Karzai, o presidente afegão, e tornar seu regime viável. O governo de Nova Déli, notou recentemente o "New York Times", recusou-se a enviar militares ao Iraque ou a pressionar pela democracia em Mianmar. Interessa-se apenas pelo Afeganistão, como forma de atrapalhar os paquistaneses.
Os indianos abriram cinco consulados na região da fronteira. São considerados intrusos pelo Taleban, tanto que recente atentado matou 41 pessoas na embaixada da Índia em Cabul, a capital afegã.
Na prática, a Índia já investiu no Afeganistão US$ 750 milhões. Constrói estradas, treina professores e funcionários.
Os Estados Unidos são aliados dos três países -Índia, Paquistão e Afeganistão. Têm com George W. Bush como prioridade o combate ao terrorismo. Mas estão inseguros em solo afegão com o fortalecimento do Taleban (e seus aliados da Al Qaeda) e carrancudos com a pouca energia que o Paquistão reserva para combater os radicais.


Com agências internacionais


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