São Paulo, domingo, 20 de julho de 2008

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Intervenção humanitária perde credibilidade

Em debate sobre ações em outro país para poupar população de regime daninho, soberania e pragmatismo acabam prevalecendo

Questão voltou à tona com recente crise em Mianmar; Guerra do Iraque deixou governos mais temerosos de efeitos e repercussões


MARCELO NINIO
DE GENEBRA

É legítimo intervir num país para salvar uma população de seu próprio governo? O debate foi reavivado em maio pelo chanceler francês, Bernard Kouchner, durante a trágica passagem de um ciclone por Mianmar, que deixou 140 mil mortos e desaparecidos.
Ex-ativista humanitário e um dos fundadores da organização Médicos sem Fronteiras, Kouchner defendeu que, diante da recusa do regime militar birmanês em cooperar, a ajuda externa às vítimas deveria ser imposta ao país.
"Os navios e helicópteros franceses poderiam chegar em meia hora à área do desastre", argumentou Kouchner, para descrença de um grande número de países das Nações Unidas, entre eles dois membros permanentes do Conselho de Segurança, China e Rússia.
Foi mais um passo tortuoso na evolução do polêmico conceito de "intervenção humanitária". A idéia, apoiada por muitos na teoria, na prática esbarra na crueza da geopolítica e no temor de que se transforme num pretexto para aplicação da lei do mais forte.
No confronto entre soberania e intervenção, observam as autoridades no assunto consultadas pela Folha, a primeira quase sempre leva vantagem na busca por consenso internacional. Sobretudo em um caso como o de Mianmar, onde a catástrofe humanitária foi causada pela natureza, não pelo regime. Além disso, havia o contexto geopolítico.
"É uma suprema ingenuidade achar que um país submetido a 20 anos de sanções e que chegou a mudar a capital de lugar por medo de uma invasão americana de repente aceitaria navios militares estrangeiros de braços abertos", disse por telefone o brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, que até março era o enviado para direitos humanos da ONU a Mianmar.

Fator Iraque
Em um artigo recente, a secretária de Estado do governo Clinton, Madeleine Albright, disse que nos anos 90 foram criados precedentes para que a soberania pudesse ser rompida quando vidas estivessem em jogo. Já a invasão do Iraque, afirma ela, gerou uma onda de reações negativas às intervenções "por causas justas".
Para John Holmes, subsecretário da ONU para direitos humanos, a invasão americana do Iraque foi "um veneno" para o direito de intervenção. "Foi extremamente negativo e serviu para desacreditar a idéia", disse Holmes à Folha. "Por outro lado, tornou-se tão difícil para os EUA que levará outros países a relutarem antes de embarcar em algo parecido."
O direito de intervenção se choca com um dos pilares das relações internacionais modernas: a soberania. A tensão é antiga, mas foi a partir dos anos 80 que a idéia ganhou força, com a criação de organizações humanitárias como a do chanceler francês.
Impressionado com a passividade do Ocidente diante da tragédia humanitária que havia presenciado na Guerra de Biafra (Nigéria), na década anterior, Kouchner defendia na época o que sugeriu recentemente no Mianmar: casos de sofrimento extremo de uma população causado ou aumentado pelo seu governo justificam o desrespeito à soberania.
A idéia evoluiu como teoria com o professor de direito italiano Mario Bettati. Foi ele que cunhou a expressão "direito de ingerência", que dá título a um livro considerado uma referência sobre o tema.
A proposta de Bettati e Kouchner desafia uma ordem mundial de mais de três décadas. Inaugurada pela Paz de Westfália (1648), que terminou a Guerra dos Trinta Anos na Europa, tinha no respeito à soberania dos Estados um princípio central. Ele foi mantido na Carta da ONU, de 1945.
Um dos principais responsáveis pela promoção do conceito de intervenção humanitária nos últimos anos Gareth Evans, ex-chanceler australiano. Em 2001 ele chefiou a comissão formada pelo governo canadense que elaborou as diretrizes do pacto Responsabilidade de Proteger, incorporado pela ONU quatro anos depois.
Conhecido pela sigla R2P, o conceito prega a responsabilidade não só de Estados, mas da comunidade internacional, de proteger civis de atrocidades. Para Evans, hoje presidente da organização International Crisis Group, a ação armada deve ser guardada como um último recurso em casos extremos, como o genocídio.
"R2P é a responsabilidade coletiva de evitar tragédias humanitárias e reagir por meio de sanções, pressão política e todos os meios disponíveis quando elas acontecem", disse Evans à Folha. Segundo ele, um bom exemplo de R2P ocorreu no Quênia no início do ano. Em outros tempos, diz Evans, o mundo demoraria a reagir aos confrontos étnicos no país. Desta vez, a pressão foi imediata, e levou a um acordo mediado pelo ex-secretário da ONU, Kofi Annan.
Paulo Sérgio Pinheiro ressalta a importância da geopolítica. Em Mianmar, lembra ele, Índia e China são os países com poder de influir sobre o isolado regime militar por suas relações comerciais e proximidade. O equilíbrio de poder e os interesses econômicas é que regem as decisões internacionais.
"Por que ninguém fala em intervir na China pelos direitos humanos?", questiona. Pinheiro acha que o conceito de intervenção humanitária permite brechas para abusos. Por isso, ao contrário de muitos grupos humanitários, concorda com a posição do governo brasileiro, que dá preferência ao respeito à soberania.


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