|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Desenvolvimento depende de africanos, diz Graça Machel
EM MOÇAMBIQUE
"Tenho que atender a estas moças, que me estão a caçar como a
uma gazela", disse a moçambicana Graça Machel a seus acompanhantes no aeroporto de Maputo,
apontando para a reportagem da
Folha, que a aguardava no local.
Uma gazela alta, elegante e risonha -essa a melhor descrição
para a lendária combatente da
Frelimo (Frente de Libertação de
Moçambique) na causa da independência em relação a Portugal
(1975) e na luta anti-apartheid nos
anos 80.
Antes de entrar para a militância política, Graça Machel, 57, estudou línguas germânicas na Universidade de Lisboa nos anos 60,
oportunidade com que raras mulheres negras da colônia poderiam sonhar na época.
Viúva de Samora Machel (1933-1986), o "Guevara moçambicano", primeiro presidente do país
após a independência, e atual mulher do líder sul-africano Nelson
Mandela, 84, com quem se casou
em 1998, Graça divide seu tempo
entre a África do Sul e Moçambique, onde participa ativamente da
reconstrução do país devastado
pela guerra civil deflagrada no final dos anos 70 pela Renamo (Resistência Nacional Moçambicana), guerrilha apoiada pelos então
governos racistas da África do Sul
e Rodésia (atual Zimbábue) e que
durou quase 20 anos.
Ela estava em Maputo participando do 8º Congresso da Frelimo, partido ainda no poder no
país, onde também dirige uma
ONG voltada para crianças, a
Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC).
Graça Machel, que foi ministra
da Educação e Cultura de Moçambique por dez anos, falou sobre o elevado índice de analfabetismo das mulheres moçambicanas (71%, chegando a 80% nas zonas rurais), sobre a epidemia de
Aids e as perspectivas para o Nepad (Nova Parceria para o Desenvolvimento da África). Ela acha
que os recursos para o crescimento da África estão dentro do próprio continente -"o dinheiro
dos ricos africanos, a sabedoria
popular e o conhecimento já produzido pelas instituições científicas em parceira com os países desenvolvidos".
(MF)
Folha - Que providências estão
sendo tomadas contra a disseminação do HIV em Moçambique, inclusive entre crianças?
Graça Machel - Moçambique só
lançou o programa de prevenção
e educação sobre Sida (Aids) muito recentemente. Há de haver, talvez, três anos. E por isso os efeitos
e impactos não podem ser ainda
recolhidos. Há estimativas de
crianças que estão a nascer infectadas ou afetadas porque os pais
ou um dos pais morrem devido à
Sida. Mas nós não temos sequer
estudos pormenorizados que
possam dizer qual é a dimensão
do problema. Essa é que é a tragédia nossa. A indicação mais próxima da realidade é o número de
camas que estão sendo ocupadas
em hospitais por doentes de Sida
(50% dos leitos). Há várias organizações brasileiras que estão a
trabalhar conosco, para colher a
experiência do Brasil nos programas de educação e prevenção, incluindo a minha própria instituição, a FDC.
Folha - De que modo o Nepad pode ajudar a África?
Machel - O Nepad é uma iniciativa que promete sucesso. Pela primeira vez, a África, quase que em
uníssono, está a dizer a si própria:
"nós temos que mudar os sistemas de governo para torná-los
mais democráticos, combater a
corrupção, aumentar os nossos
próprios orçamentos para as
áreas sociais". Estamos a falar em
infra-estrutura, em uma agricultura mais moderna. Tudo isso
são, primeiro que tudo, mensagens de todos os africanos para os
africanos. E eu acho que isso é
uma grande mudança. Pela primeira vez, nós estamos a falar
com o mundo desenvolvido em
termos de parceria e não em termos de ajuda.
Folha - Qual é a diferença?
Machel - Não estamos aqui à espera de que os países desenvolvidos nos ajudem. Estamos a dizer
que nós temos potencialidades,
recursos, que queremos cooperar
e queremos que eles transfiram
conhecimento, tecnologias, mas
para se juntarem aos africanos e
trabalhar com eles num esforço
de mútuos benefícios. Então,
aqui, a equação de relacionamento com os países desenvolvidos é
totalmente diferente. Mas eu não
estou a dizer que tudo está rosado
com o Nepad.
Folha - Por exemplo?
Machel - É preciso fazer muito
mais trabalho para convencer os
próprios africanos de que há capacidade de mobilizar recursos
no interior do continente. E, portanto, para um desenvolvimento
ser sustentável, tem que se assentar em capacidade local. Não pode
depender muito das parcerias que
virão de fora. Os recursos para o
arranque do desenvolvimento de
África estão dentro do próprio
continente.
Folha - Quais são esses recursos?
Machel - Começa pelos recursos
humanos. Apesar de sermos pobres, como se diz, há muito conhecimento nas pessoas. Não só a
sabedoria popular, mas mesmo
tecnologias. Por que as pessoas
não morreram todas aqui? Porque alguma agricultura se está a
fazer, e é baseada em tecnologias
que as pessoas dominam. Se você
trouxer equipamento e tecnologias muito sofisticadas e disser
que é isso que vai mudar a agricultura, os camponeses africanos
não vão poder sustentar isso. É
preciso despertar os recursos humanos locais para eles terem
consciência de si próprios e melhorarem a maneira como fazem
as coisas. Mesmo em termos de
recursos financeiros, nós somos
pobres de uma maneira geral,
mas há gente rica neste continente. E eles têm que aprender que é
necessário investir em África e
não investir nos Estados Unidos e
na Europa só. Quem vai desenvolver os africanos são os africanos.
Folha - Por que um índice de analfabetismo tão alto entre as mulheres moçambicanas?
Machel - As mulheres têm pouco
acesso às instituições de educação
e de formação. Quando nós chegamos à independência, as taxas
de analfabetismo eram muito altas em todo o país. Começamos
campanhas de alfabetização e
educação de adultos que estavam
a ter algum sucesso. Então houve
a guerra e interrompeu-se tudo,
em particular no campo, onde o
impacto da guerra se fez sentir
muito mais. Agora é que se está a
refazer as redes de educação e de
alfabetização de adultos. As mulheres até, por sinal, são muito
mais entusiastas com a alfabetização do que os homens, quando o
programa está perto de onde elas
trabalham. É preciso colocar os
centros de alfabetização perto delas. E isso é que tem sido o desafio
dos organismos do Estado e das
organizações não-governamentais.
Folha - Quais as prioridades sociais do país tiradas do 8º Congresso da Frelimo?
Machel - A prioridade é mais ou
menos equilibrada entre educação, saúde, agricultura. Mas nós
precisamos produzir mais comida. Se as pessoas não comem, não
podem estudar, nem podem ir ao
hospital. Aliás, vão para o hospital
porque não comem. Portanto é
preciso atacar seriamente o problema da segurança alimentar.
Mas, por outro lado, é verdade
que educação, saúde e água, abastecimento de água, são muito importantes.
Texto Anterior: Tensão racial persiste em relações sul-africanas Próximo Texto: Vizinho em crise: Paraguai tenta se livrar de sombra de Oviedo Índice
|