|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Para o especialista Dilip Hiro, o ex-ditador deve usar detalhes de suas relações com Washington para se defender
Réu, Saddam pode constranger os EUA
JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL
Os EUA poderão correr sérios
riscos com o julgamento de Saddam Hussein. O ditador deposto é
detentor de informações sobre a
cumplicidade americana na produção de armas químicas e na eliminação de inimigos internos.
Seria abrir um armário cheio de
esqueletos, argumenta Dilip Hiro,
indiano radicado em Londres e
autor, nas últimas três décadas, de
24 livros sobre o Oriente Médio e
questões políticas no islamismo.
Ele está para lançar "Secrets and
Lies" (segredos e mentiras) pela
editora americana The Nation
Books, ligada à ala mais liberal do
Partido Democrata. À Folha, Hiro diz que o processo contra o ex-ditador exporia redes internacionais de cumplicidade que deixariam os americanos numa situação incômoda. Eis os principais
trechos da entrevista.
Folha - Há uma previsão sobre os
procedimentos que orientarão o
julgamento de Saddam?
Dilip Hiro - Certa vez Dick Cheney, o vice americano, disse que
George W. Bush agia como um
caubói porque mirava no peito do
inimigo. Ele é um texano obstinado e frio. O julgamento será uma
peça política importante no jogo
da Casa Branca. O tribunal especial em que Saddam será julgado
teve seu formato definido pelo
Conselho de Governo Iraquiano
alguns dias antes da captura do
ex-ditador. As discussões internas
duraram três meses. Um período
no mínimo superior a esse será
agora necessário para definir formas de instrução do processo, regras para a contratação de advogados estrangeiros, observadores
e assim por diante.
Folha - Será, a seu ver, um grande
"espetáculo"?
Hiro - No idioma urdu, que
aprendi quando criança, há uma
palavra curiosa, "tamaaha", que
serve para designar qualquer forma de entretenimento. O Conselho de Governo Iraquiano precisará transformar necessariamente o julgamento de Saddam numa
espécie de circo, numa "tamaaha", como forma de desviar a
atenção da população da falta de
segurança, do péssimo funcionamento do telefone, do estado deplorável das escolas e hospitais,
do desemprego.
Há ainda a lei de talião como
componente da cultura iraquiana, "olho por olho, dente por dente". Se Saddam provocou sofrimentos, é saudável vê-lo sofrer
como réu.
Folha - O que pode ocorrer durante o julgamento?
Hiro - Saddam já é um réu humilhado pela difusão das imagens
feitas logo depois de sua captura.
Ele estava sonolento. Mas durante
o julgamento ele estará acordado.
Ele é um homem calculista, determinado, cruel ao extremo, brutal.
No dia seguinte à captura, quando
alguns integrantes do conselho de
governo o visitaram, a nítida impressão que ele passou foi a de ser
um homem sem remorsos. Ele jamais aceitaria o fato de ter feito algo errado. É então previsível que
se defenda com unhas e dentes.
Folha - Que acusações sustentarão os argumentos da Promotoria?
Hiro - Com certeza ele será julgado por sua tirania, pelo uso de armas de destruição em massa e por
vínculos com o terrorismo. A tirania é uma longa história. Saddam
é poderoso desde que se tornou
vice-presidente, em 1975, antes de
se tornar presidente, em julho de
1979. Sua brutalidade máxima, no
entanto, ocorreu durante a guerra
com o Irã [1980-88]. Vejam que
nesse período os EUA tinham como presidente Ronald Reagan,
republicano como Bush. Foi um
período em que não interessava
aos EUA pintar Saddam como
um violador de direitos humanos.
Folha - Mas, sobre armas de destruição em massa, ele usou armas
químicas para exterminar curdos.
Hiro - Em 1988 ocorreu o genocídio contra uma cidade curda, matando de 3.200 a 5.000 pessoas.
Ora, no ano seguinte a ajuda dos
EUA ao Iraque foi multiplicada
por dois. Saddam sabe disso melhor que ninguém. Ele teria, com
o julgamento, uma maneira de recolocar temas delicados como este na agenda das discussões.
Folha - Poderá também sobrar
para os curdos?
Hiro - Com certeza. Durante a
guerra com o Irã dois dos partidos
curdos se aliaram aos iranianos.
Para os iraquianos não-curdos a
história pode ser vista como um
ato de traição, de aliança com o
inimigo. Os próprios curdos se
apoderaram de uma parte do
Curdistão, parcialmente recuperada por Saddam. Abrir a tampa
do reservatório em que estão armazenadas histórias como essa é
dar um tiro no pé do projeto de
reconciliação do Iraque.
Saddam pode aproveitar o julgamento para dividir seus compatriotas ainda mais. Ele sabe que,
para os curdos, a região de Mossul
foi arrancada pelos britânicos à
Turquia, nos anos 20, e anexada
artificialmente ao Iraque porque a
região tinha muito petróleo. E o
que dizer de os sunitas, mesmo
minoritários, governarem a
maioria xiita desde 1638? Saddam
é terrível. Ele fará de tudo para jogar uns contra os outros.
Folha - E nos demais países árabes, qual seria a percepção do julgamento do ex-ditador?
Hiro - Em alguns países, como o
Kuait, Saddam é o vilão e continuará a sê-lo, em razão da invasão
de 1990. Mas as coisas se complicam entre os demais árabes. Há os
três governos próximos dos EUA
-Jordânia, Arábia Saudita e Egito. Mas, mesmo nesses países, a
mídia tem argumentado que agora, com a prisão de Saddam, os
EUA completaram sua missão e
devem deixar o Oriente Médio. E
argumentam também que os
americanos devem deixar que o
Iraque julgue Saddam porque foi
o país que sofreu nas mãos dele.
Folha - Mas há ainda a Síria, que
manda no Líbano, apóia historicamente o terror e é uma ditadura.
Hiro - É algo a meu ver interessante. A Síria é governada pelo
Baath, que até 1966 era o mesmo
partido do qual Saddam Hussein
se serviu para subir ao poder e governar o Iraque. Apesar de divergências mortais de Saddam com o
falecido presidente Assad, há uma
forte afinidade entre as burocracias do Iraque e da Síria. Saddam
tem horror ao atual presidente
Assad, filho do anterior. Se tiver o
julgamento como palanque, com
certeza tentará prejudicá-lo.
Folha - Há também as relações da
ditadura iraquiana com as empresas ocidentais, sobretudo nos anos
70, com petrodólares abundantes.
Hiro - Com certeza. Voltemos a
1988 -os EUA auxiliavam Saddam contra o Irã, com dinheiro e
informações. Em troca, Saddam
era generoso ao contratar empresas americanas. Creio que agora
Saddam, como réu, estará assessorado por bons advogados. Citará episódios embaraçosos. Dirá
que os americanos venderam matéria-prima para armas químicas.
Que a França vendeu equipamentos para o programa nuclear.
Folha - Mas as ligações do Iraque
com os EUA são conhecidas.
Hiro - O problema é que Saddam
tem uma excelente memória, participou de tudo. O potencial explosivo de segredos que pode revelar ao tribunal não pode ser
desprezado. Vejamos ainda com
relação aos direitos humanos. O
partido Baath chegou pela primeira vez ao poder em fevereiro
de 1963. Kennedy era o presidente
dos EUA. O Baath foi na época auxiliado pela CIA. A prioridade
americana na época era destruir o
Partido Comunista Iraquiano, o
mais poderoso e antigo do mundo árabe. Em poucas semanas
5.000 comunistas foram presos e
massacrados. Se abrirem o armário, vão achar esses esqueletos.
Folha - Donald Rumsfeld, hoje secretário da Defesa dos EUA, seria
também vulnerável?
Hiro - Em dezembro de 1983,
Rumsfeld foi recebido por Saddam porque a empresa para a
qual Rumsfeld trabalhava, a
Bechtel, queria construir o oleoduto do Iraque ao litoral jordaniano. Algumas semanas antes dessa
audiência, o Iraque havia usado
pela primeira vez armas químicas
contra civis iranianos. Creio que
Saddam aproveitaria o julgamento para evocar essas coisas.
Texto Anterior: Iraque ocupado: "Braço direito" entregou Saddam, dizem EUA Próximo Texto: Agora, mídia árabe não poderá ignorar evento Índice
|