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ELEIÇÃO NOS EUA
Livro com diários do pré-candidato democrata durante a guerra mostra como se definiram suas crenças políticas
Formação de Kerry é marcada pelo Vietnã
CÍNTIA CARDOSO
DE NOVA YORK
Nas trincheiras da disputa para
a Presidência dos EUA neste ano,
o legado da Guerra do Vietnã surge como tema recorrente das
campanhas eleitorais de George
W. Bush e do pré-candidato democrata John Kerry.
A seu favor, Kerry tem a aura de
ex-combatente condecorado no
conflito, enquanto Bush se vê
bombardeado por acusações de
que não teria cumprido regularmente as suas obrigações militares na Guarda Nacional durante
parte do período da guerra.
Lançado recentemente pelo historiador americano Douglas
Brinkley, o livro "Tour of Duty:
John Kerry and the Vietnam
War" (algo como jornada de dever: John Kerry e a Guerra do
Vietnã) divulga pela primeira vez
os diários pessoais de Kerry e as
cartas enviadas para a família.
Ao longo de aproximadamente
500 páginas, a obra traz crônicas e
algumas poesias que relatam os
horrores da guerra -incêndios
de aldeias, a morte de um amigo
próximo e a permanente tensão
das tropas americanas- sob o
olhar do futuro senador. Num
dos momentos mais chocantes, o
diário de Kerry revela que, por
um erro de avaliação do seu pelotão, uma criança foi assassinada.
Esse tipo de experiência é, na
avaliação de Brinkley, um elemento determinante para a formação política do pré-candidato
à Presidência dos EUA.
"A pessoa pode sair do Vietnã,
pode abandonar o uniforme, mas
o Vietnã vai continuar presente
nela como uma ameba. O Vietnã é
parte do que Kerry é hoje. As lembranças nunca o deixaram. Isso
faz com que ele pense que a guerra é sempre o último recurso a ser
usado", disse à Folha.
Segundo Brinkley, a escolha de
Kerry para ser o tema central do
seu livro foi um acaso. "Comecei
o projeto há 18 meses. Queria fazer um livro sobre a Marinha dos
EUA durante a Guerra do Vietnã", afirmou. "A maioria dos veteranos escreveu um livro de memórias ou pelo menos um artigo.
Kerry nunca tinha escrito nada.
Soube que ele tinha um diário e
entrei em contato com ele."
O autor diz que teve de se debruçar sobre pilhas de cartas e notas pessoais que o impressionaram. "É difícil achar um veterano
que tenha escrito com tanta paixão e com tantos detalhes sobre as
suas angústias existenciais."
Mas o livro, que aparece no
"New York Times" entre os 20
mais vendidos, quase foi engavetado. O historiador contou que o
editor ficou "cético" e mostrou
pouco entusiasmo com um livro
baseado inteiramente nas memórias de "um senador democrata".
Lembrança viva
Brinkley diz ainda que essa experiência militar forjou em Kerry
o que tem sido uma das tônicas do
seu discurso sobre política externa: a ênfase no multilateralismo.
"O Vietnã também ensinou a
Kerry como é importante que um
país como os EUA não ajam sozinhos e procurem ter aliados."
Kerry alistou-se na Marinha
americana em fevereiro de 1966,
alguns meses antes de completar
a sua graduação na Universidade
Yale. Depois de um período de
treinamento em ações no Pacífico, foi enviado para servir em barcos de patrulha militares em rios
do Vietnã.
Ao longo de dois anos de serviços, ele foi condecorado por bravura e por ferimentos sofridos em
batalhas. Ao ser dispensado, em
1970, tornou-se um dos maiores
ativistas contra a guerra.
Esse perfil de herói de guerra
tem sido um trunfo do democrata
com os veteranos, uma parcela até
então pouco explorada por candidatos a presidente.
Segundo estatísticas do governo, há 26 milhões de veteranos.
Um terço desse total é formado
por ex-combatentes do Vietnã.
Em sua campanha, Kerry promete adotar uma conduta "de veterano para veterano", caso seja
eleito. Para Brinkley, esse é um
apelo forte para essa fatia marginalizada da sociedade. "O Vietnã
foi uma guerra imoral. Há um estigma em ser um veterano do
Vietnã. Enfatizo no meu livro que
esses jovens só seguiram ordens.
Na minha avaliação, Kerry fez as
duas coisas de forma correta. Ele
serviu honradamente às Forças
Armadas. Mas, quando voltou
para os EUA, teve a coragem de
dizer que a guerra foi um erro."
No entanto a popularidade do
senador de Massachusetts entre
os ex-combatentes não é consensual. Alguns veteranos consideram sua atitude antibelicista como uma afronta à honra e como
um ato de antipatriotismo.
O ex-boina-verde Ted Sampley
criou um site intitulado Veteranos do Vietnã contra Kerry
(www.usvetdsp.com), com o objetivo de criticar seu comportamento após ter retornado do conflito.
Nas últimas semanas, começou
a circular na mídia americana
uma foto na qual Kerry aparece
sentado próximo à atriz Jane Fonda, um dos ícones do movimento
pacifista, num comício contra a
guerra nos anos 70.
O jornal inglês "The Guardian"
revelou que, na verdade, essa foto
é uma fraude, resultado da montagem de duas imagens diferentes. A rapidez com que a foto se
disseminou, no entanto, mostra
como está ativa a rede de veteranos contrários a Kerry.
Para Brinkley, a relevância do
debate sobre o Vietnã não se restringe à campanha eleitoral. "É
importante não esquecer o passado. Os dilemas que enfrentamos
no Vietnã, o problema de querer
impor uma democracia a outro
país, a volta dos corpos dos americanos em sacos plásticos... Todos esses são temas que revisitamos hoje. Há um nítido paralelo entre o Vietnã e o Iraque."
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