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DIÁRIO DE BAGDÁ
'Apocalypse Now'
Juca Varella/Folha Imagem
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O garoto Ahmed Ali, de 5 anos, em hospital localizado no centro de Bagdá que recebeu feridos da série de bombardeios na cidade |
Figura de Saddam lembra o "Grande Irmão" de Orwell
Novelas brasileiras fazem sucesso na TV iraquiana
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Por SÉRGIO DÁVILA, ENVIADO ESPECIAL A BAGDÁ
"Apocalypse Now". Mais precisamente a cena em que o militar
interpretado por Robert Duvall
manda banhar de napalm as palmeiras que separam a areia da
praia do continente, no Vietnã.
Foi essa a primeira cena que veio à
cabeça do repórter no bombardeio de sexta-feira última à noite,
ao longo da margem do Tigre. O
problema é que era de verdade, e
era logo ali ao lado.
E as mais de 200 vítimas civis
atestam que não existe o que se
chama de guerra cirúrgica.
Passeando pela cidade, é difícil
separar o que foi derrubado pelos
mísseis norte-americanos e o que
já era ruína, tamanha a falta de dinheiro para manutenção -como
em Cuba, aliás. Não se encaixa em
nenhuma das duas categorias o
que deveria ser a maior mesquita
do mundo árabe, um projeto de
estimação de Saddam. Está parada há meses, mas o seu esqueleto
de concreto já lembra o de alguns
palácios do líder iraquiano atingidos.
Falando em Saddam, todo o seu
ministério é formado por generais e se apresenta à imprensa de
boina preta e farda verde-oliva.
No bolso da manga do braço esquerdo, invariavelmente, duas canetas. Os mais vaidosos, como o
ministro da Eletricidade, mandam folhar a pistola a ouro.
O presidente iraquiano é onipresente. Todas as paredes internas de todos os espaços públicos
trazem um retrato dele. Nas TVs e
rádios, ele domina 90% da programação. Nas ruas, ele confirma
em concreto e metal o "Grande Irmão" imaginado por Orwell a cada praça, cada esquina, cada outdoor (só há outdoors para Saddam Hussein; nenhum outro produto é anunciado).
Em todo o lugar a que chega a
imprensa internacional, logo um
grupo de cinco a dez funcionários
aparece e faz uma manifestação
"voluntária" a favor de Saddam
Hussein. Os slogans são pobres:
"Saddam é nosso pai", "Bush,
Bush, down, down". E o melhor
deles: "Nós apoiamos o presidente Saddam Hussein".
Os ocidentais, aliás, pronunciamos erroneamente o sobrenome
do presidente: é "rusíen", e não
"russêin".
Ninguém fala, porém, da mulher dele. Ninguém fala, aliás, de
mulher nenhuma.
Não há mulher nas ruas de Bagdá.
Também não há chiclete nas
ruas de Bagdá.
Mesmo assim, Bagdá não perde
o bom humor e o calor humano.
Brasileiros, por exemplo, que não
são identificados com o invasor
nem com ameaça nenhuma, são
muito bem tratados.
Mas há muito café. Não o que
toma o brasileiro. É mais um chá.
Diz-se "kahua". O chá em si é
"chai". (Ou "tchai", se você é do
Egito ou é iraquiano e quer se meter a besta).
Os mais ricos, não necessariamente mais metidos, moram nos
bairros de Al Mansur e El Kharadi, ambos à beira do rio (que fede). Lá, as mansões saem por até
US$ 20 mil -contra US$ 3 mil de
uma casa de classe média.
Aliás, os iraquianos pronunciam Bagdad. E trocam o pê pelo
bê sempre que aprendem uma
nova palavra ocidental. Por exemplo: "punda".
Os homens se dão três beijos no
rosto quando se encontram, quatro se são muito amigos. Soldados
do mesmo batalhão andam de
mãos dadas se saem em dupla.
Fuma-se como se não houvesse
amanhã -e talvez não haja mesmo. É o único dos vícios permitido pelo Islã, e os iraquianos fazem
valer cada segundo dele. A maioria dos carros, no entanto, tem os
cinzeiros limpos. Reparando
bem, percebe-se um copo de água
fixado em algum lugar do painel.
Dentro dele, bóiam felizes as bitucas e as cinzas.
Antes, durante e depois de fumar, come-se. Assim mesmo, ao
contrário. A mesa iraquiana é
simples, mais pelo embargo econômico do que por gosto. Quando tem, tem os tradicionais kebab
de carneiro e de frango, além de
húmus (pasta de grão-de-bico) e
arroz com aletria. Mas quibe é
kubbeh (pronuncia-se "cúbe") e
esfiha não há. Parece que a iguaria
só é chamada assim na Síria.
Já o objeto de consumo é a ovelha. Que faz mesmo um improvável "mé", como se fosse de história em quadrinhos. Todos querem ter uma ovelha, seja para fazer queijo, seja para fazer banquete, seja para usar a pele como tapete. Rico é quem tem mais ovelhas. Chega ao ponto de uma das
lanchonetes mais populares da cidade mostrar em seu outdoor um
menininho brincando com uma
delas. Detalhe: o bichinho vai ser a
matéria-prima do principal sanduíche da casa.
Depois da mesa, o banho. Bagdá
-e, até onde pude ver, o Iraque- tem seus banheiros entre
os dez piores do mundo. São buracos no chão, seja para homens,
seja para mulheres, com uma singela bacia cheia d'água ao lado. A
exceção são os hotéis. Mesmo assim, vão mal os hotéis de Bagdá.
A começar pelo telefone, que é
da década de 70. E a TV, muitas
vezes P&B e, quando colorida, de
um modelo soviético dos anos 80.
Cabo é ilusão de ótica, assim como controle remoto.
A pirataria reina, já que desde o
embargo o Iraque não vem primando exatamente por respeitar
direitos intelectuais. Assim, é possível fumar o cigarro Mikado,
com o eme, o desenho e a cor
idênticos aos do Marlboro. Ou
admirar a atriz Natalie Portman
(a princesa Amidala de "Star
Wars") anunciando uma lanchonete de comida para viagem.
Ninguém aqui sabe do que se
trata aquela menina. O dono da
loja viu a foto bonita numa revista
ocidental e pediu ao amigo para
colocá-la no letreiro. A Hollywood de Bagdá, a terra dos sonhos impossíveis, é o Egito.
É de lá que vêm os grandes filmes,
os "astros" e "estrelas" e os cantores
consumidos na cidade. Como, por
exemplo, Hanan Turk, que está filmando "Hub El Banat" (Romance
de Garotas). Ela explodiu em
"Raghba Motawahesh" (Um Desejo Selvagem), muito famoso. Já sua
concorrente Muna Zaki anuncia a
filmagem de "Hub Ala Al Internet"
(Amor sobre a Internet).
Está tudo no "Iraq Daily", publicado pelo Ministério da Informação (toda a imprensa é estatal, assim como a TV, as rádios etc.).
É lá que se anuncia que o Iraque
está produzindo seu centésimo
filme. Sim, o berço da civilização,
a terra que inventou a escrita e o
código civil há milênios produziu
um total de 99 longas metragens
até hoje. O de número 100 vai se
chamar "Noite Chuvosa" e será
dirigido por Hashim Abu Iraq.
Trata da guerra do país contra o
vizinho Irã, nos anos 80.
O Brasil também dá sua contribuição às artes locais, sendo responsável por dois dos maiores sucessos televisivos do Iraque: as telenovelas "Maria Helena" e "Regina". Também não consegui descobrir quais são (ambas já saíram
do ar), mas entendi que a primeira tirava seu nome do personagem principal e a segunda, da atriz (Regina Duarte, claro).
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