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IRAQUE OCUPADO
"Novelização" do noticiário da TV pode transformar frustração com a invasão em derrota do presidente
Famílias de soldados são ameaça para Bush
FRANK RICH
DO ""NEW YORK TIMES"
Em 27 de fevereiro de 1968, o âncora visto na época como o mais
confiável dos EUA, Walter Cronkite, da CBS, encerrou uma matéria especial sobre o Vietnã dizendo que ""a única saída racional"
seria buscar negociar o fim da
guerra. Para o presidente Lyndon
Johnson, esse pronunciamento
de Cronkite representou sua sentença de morte política. ""Se perdi
[o apoio de] Cronkite, perdi o sr.
Cidadão Comum", ele confidenciou a seu secretário de imprensa.
Um mês mais tarde, Johnson decidiu não tentar se reeleger.
Se o Iraque fosse o Vietnã, o
aparecimento de Bob Woodward
no programa "60 Minutes" da
noite do domingo passado poderia ter sido o momento em que
George W. Bush perdeu o apoio
de ""Joe Public" (o termo que o
atual presidente texano prefere
para designar o cidadão comum).
Woodward, o mais famoso dos
jornalistas americanos, até agora
não era visto como tendo sido intransigente com o presidente. Se o
fosse, Bush jamais teria lhe concedido horas de entrevistas ""on the
record". No domingo passado,
entretanto, Bush parece ter perdido seu apoio.
Entretanto, apesar de todas as
semelhanças, o Iraque não é o
Vietnã -não como guerra, e menos ainda como evento de televisão. A Guerra do Iraque possui
sua dinâmica de mídia própria,
que ainda poderá expulsar Bush
do poder, mas não seguindo o
mesmo roteiro com o qual o Vietnã derrubou Lyndon Johnson.
Não existem mais figuras quase
paternas como Cronkite, não há
mais um âncora, jornalista ou órgão de imprensa que exerça um
poder tão grande sobre o público
de massas. Existe, em lugar disso,
uma nova cultura de imprensa
que fez do atual presidente seu alvo -uma cultura que não existia
na época do Vietnã e que pode ser
mais letal do que havia naquele
período.
Parte dessa nova cultura se deve
à tecnologia, é claro. Comparado
ao sangue derramado no Vietnã,
as imagens do sangue vertido no
Iraque parecem movidas a esteróides eletrônicos. Mas num país
que faz fila para assistir a ""Kill
Bill", o explícito ""momento Mogadício" em Fallujah pode ter impacto de curta duração.
Noticiário como novela
A mudança na cultura jornalística que representa a ameaça mais
séria ao presidente não é sensorial, mas emocional: a ascensão
do noticiário como uma telenovela que fica no ar 24 horas por dia,
sete dias por semana, e cujas estrelas são pessoas comuns. Hoje o
presidente Bush enfrenta a "telenovela" ""As Famílias".
Bush sabe como defender-se de
jornalistas: ele os mantêm à distância e os retrata como membros
de uma elite que não tem contato
com ""Joe Public".
Procura limitar a transmissão
de imagens aflitivas, ou criando
outras que se sobreponham a elas,
como imagens triunfalistas (dele
no porta-aviões, por exemplo), ou
proibindo sua veiculação (no caso
das fotos de caixões de soldados).
Para justificar esse veto à mídia,
Bush disse ter ficado "emocionado" com as imagens. Mais tarde,
um porta-voz acrescentou: "Temos de prestar atenção à privacidade e à sensibilidade das famílias
dos mortos; essa deve ser nossa
maior preocupação".
Entretanto, confrontado com
uma revolta das Famílias, ele cede. As Famílias são o próprio ""Joe
Public", e percebe-se o medo que
Bush sente delas pelo momento
escolhido para a coletiva de imprensa repentina dada no horário
nobre do dia 13 deste mês. Nos
dias anteriores a televisão tinha sido dominada pelas famílias, e o
fenômeno estava à toda no dia 12.
Todos os três programas de notícias matinais das grandes redes
abertas, justamente os que são
vistos por um público enorme de
mulheres americanas em idade de
votar, trouxeram matérias sobre
as famílias ou entrevistas com elas
ou seus vizinhos: ou as famílias de
vítimas do 11 de Setembro, ou as
famílias de soldados americanos
(dos soldados mortos no Iraque
ou daqueles que foram obrigados
a estender sua permanência no
país), ou, ainda, dos americanos
feitos reféns no Iraque.
Essas famílias, com suas tristes
histórias sobre pais ou filhos mortos ou ausentes, comovem o público profundamente. A Casa
Branca, depois de cometer o erro
estratégico de manter o presidente longe das famílias enlutadas no
início da guerra, agora quer desesperadamente aproximar-se
delas. Na entrevista relutante que
concedeu à imprensa, Bush não
parecia estar em comando de
muita coisa, tendo sido obrigado
a improvisar, mas ele soube bater
em suas teclas já ensaiadas sobre
as famílias -e mais de meia dúzia de vezes.
""Sinto-me incrivelmente triste
quando encontro familiares das
vítimas", ele disse em dado momento, acrescentando: ""E o faço
com freqüência" (mensagem: eu
me importo -e mais do que meu
pai parecia se importar). ""Já estive
com muitos familiares", ele reiterou mais tarde, ""e faço o melhor
que posso para consolá-los pela
perda de seus entes queridos"
(mensagem: eu me preocupo tanto quanto Bill Clinton se preocupou após Oklahoma City).
No entanto a entrevista coletiva
à imprensa não interrompeu o
fluxo constante de famílias na televisão, e a cada dia que passa o
Iraque vai criando novos membros desse elenco.
Os assessores presidenciais Karl
Rove e Karen Hughes não se atrevem a enfrentar as famílias que
enviaram entes queridos ao Iraque e agora estão cada vez mais
impacientes com a guerra ou já se
voltaram contra ela. Seja como
for, a telenovela familiar trágica já
virou uma parte tão integrante da
cultura da mídia que as grandes
redes de TV não têm como abrir
mão dela, não importa o que a Casa Branca tenha a dizer a respeito.
Começando em 1996, quando a
Fox News e a MSNBC puseram
fim ao monopólio da CNN sobre
o noticiário a cabo 24 horas por
dia, o sofrimento de pessoas que
perderam filhos ou pais, ou em
razão de calamidades apocalípticas ou de crimes comuns, já virou
indício certeiro de sucesso de audiência nos noticiários de TV,
tanto da televisão a cabo quanto
da aberta.
Não é a mesma cultura que
aquela que promoveu a inversão
de opiniões no front doméstico
no caso do Vietnã. Nessa guerra,
as tropas americanas eram vilificadas (coisa que não acontece na
guerra atual, mesmo por seus críticos mais intransigentes), e suas
famílias não eram sempre, como
hoje, as famílias suburbanas, de
classe média, que integram o público do noticiário noturno ou do
""Good Morning America".
Os principais manifestantes a se
opor à guerra tampouco eram
pessoas cujas imagens agradavam
aos telespectadores: com freqüência eram estudantes de cabelos
compridos e linguagem desagradável. Durante anos, foi fácil para
a televisão (e o público) desprezar
ou marginalizar aqueles que protestavam contra a guerra.
O verdadeiro protótipo do tratamento atual que a TV está dando ao Iraque é a crise dos reféns
americanos no Irã, em 1979-80.
Em ""Roone", seu livro de memórias publicado postumamente,
Roone Arledge, da ABC News, relata a excitação (e o retorno em
audiência) da transformação da
captura dos 52 americanos em
Teerã numa telenovela diária.
Ele percebeu que era essa a maneira de transformar as questões
complexas do islamismo radical e
do Oriente Médio num programa
de suspense que ninguém podia
deixar de ver, estrelado por americanos comuns. Quando a atração começou a atingir até 30% da
audiência, a ABC se deu conta de
que finalmente encontrara uma
maneira de competir com o invencível Johnny Carson.
Em seu livro, Arledge recorda
que a Casa Branca de Jimmy Carter começou por receber bem essa
narrativa diária, imaginando que
a dramatização feita pela ABC da
história dos reféns mostrasse o
executivo-chefe em luz mais presidencial do que seu rival nas primárias, Teddy Kennedy. Em lugar disso, porém, o foco implacável da ABC sobre a frustração das
famílias dos reféns acabou contribuindo para a impressão crescente de que Carter era ineficiente.
Quando chegou o dia da eleição,
um ano após a tomada dos reféns,
o programa de Arledge ajudara a
preparar a derrota de Carter.
Mas aquela cobertura era um
empreendimento minúsculo
comparado ao destaque atual dado às famílias das vítimas da guerra por muitas redes de TV em
muitos programas. Agora o que
se vê são as famílias o tempo todo,
e os danos parecem estar se manifestando em menos tempo.
No domingo passado, quando o
""60 Minutes" se preparava para
colocar no ar sua entrevista com
Woodward, o historiador Niall
Ferguson escreveu no ""New York
Times" que é assustador ver as
sondagens que indicam que o número de americanos que acham
que a situação no Iraque vai bem
caiu de 85% para 35% em apenas
um ano, sendo que metade do
país já deseja algum grau de retirada das tropas.
Ferguson observou que a aprovação americana da Guerra do
Vietnã caiu para menos de 40%
apenas em 1968, quando os mortos americanos já eram mais de 20
mil, muito mais do que os 700
mortos no Iraque até agora.
Existem várias razões políticas
que explicam essa aceleração do
desencanto nacional nos meses
do pós-guerra, a maioria delas visíveis em campo no Iraque. Mas
não se deve subestimar o componente cultural.
Ficou célebre a frase do crítico
de televisão Michael Arlen, que
batizou a Guerra do Vietnã de ""A
Guerra da Sala de Estar". Em nossa nova guerra da sala de estar,
porém, a batalha da mídia chegou
até as salas de estar reais em que
as Famílias concedem suas entrevistas às redes de TV. Essas Famílias são as guerrilheiras subestimadas na batalha pela opinião
pública. O governo talvez tenha
mais dificuldade em pacificá-las
do que em subjugar os insurgentes em Fallujah.
Tradução de Clara Allain
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