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FÉ E POLÍTICA
Após décadas de silêncio, americanos retomam a discussão de princípios religiosos e morais como questões de Estado
Religião volta ao debate público nos EUA
FELICIA R. LEE
DO "THE NEW YORK TIMES"
Desde a recente decisão da Suprema Corte que autoriza o uso
de verbas do ensino público para
pagar mensalidades de escolas religiosas até uma objeção formulada em tribunal à frase "uma nação
sob Deus", no juramento de fidelidade à pátria, passando por discussões sobre clonagem, pesquisas com células-tronco, eutanásia
e engenharia genética, a religião
vem retornando à arena pública
de modo complexo e imprevisto.
O flerte entre o secular e o sagrado sempre provocou alarme entre
os acadêmicos americanos, que
costumam enxergar qualquer intrusão da religião na esfera política como perigosa. No século passado, gigantes intelectuais como
John Dewey e Sigmund Freud
menosprezaram a religião, enxergando-a como algo infantil, e previram uma sociedade moderna
cada vez mais secular. Para Dewey, a religião "foi petrificada numa escravidão de pensamento e
sentimento, como superioridade
intolerante da parte de poucos e
peso intolerável para muitos".
Ultimamente, porém, um número crescente de cientistas sociais, filósofos, historiadores e outros acadêmicos vem procurando
explicar a reentrada dinâmica da
religião na esfera pública. Alguns
a vêem com tanto prazer quanto
aflição. "Até 20 anos atrás, havia
nos círculos acadêmicos e no
mundo do jornalismo uma convenção segundo a qual não se falava em convicções religiosas",
disse o filósofo Michael Novak, do
conservador Instituto de Empresas Americanas. "Hoje, há mais liberdade. As pessoas fazem questão de falar de religião."
O padre católico Richard John
Neuhaus, editor do periódico
mensal "First Things", que trata
de religião, cultura e vida pública,
concorda que o ambiente mudou
radicalmente. Em 1984, ele escreveu um livro queixando-se da exclusão da religião da vida pública.
"A idéia dominante, na época,
era que estávamos rapidamente
nos transformando numa sociedade secular e que as idéias de
fundamento religioso não têm lugar na praça pública", disse Neuhaus. Mas, para ele, esse não é
mais o caso, e ele oferece como
exemplo um relatório divulgado
em julho pelo Conselho de Bioética do presidente. "O relatório afirmou, de maneira muito direta e
sem rodeios, que estamos lidando
com questões de natureza francamente moral, e que, de agora em
diante, é preciso levar em conta as
perspectivas religiosas e filosóficas", disse Neuhaus. Ele acha que
um gesto de abertura com a religião, como esse, não poderia ter
sido feito há duas décadas.
Algumas pessoas se surpreendem com a mudança ocorrida entre os acadêmicos, muitas vezes
defensores acirrados do secularismo. Nos últimos dez anos, têm sido empreendidos mais estudos
sobre fenômenos religiosos e
mais pesquisas ligadas à religião,
disse Jean Bethke Elshtain, professora conservadora de ética na
Universidade de Chicago.
"Muitos dos argumentos segundo os quais a voz religiosa não
tem lugar nas discussões públicas
foram contestados não apenas
por quem possui convicções religiosas, mas por aqueles que dizem que, se queremos ouvir todas
as vozes se expressando, como
podemos querer que se calem as
que adotam uma perspectiva religiosa?", disse Elshtain.
Para muitos, o avanço da ciência, com suas questões repletas de
nuanças morais, é tão responsável
pela volta da religião ao centro das
atenções quanto são as discussões
sempre atuais sobre a família.
"Sempre haverá questões ligadas
à vida pessoal e à realidade moral
objetiva", disse o pesquisador Michael Cromarty, de Washington.
Novak explicou: "Como criamos nossos filhos? O que é um
homem? O que é uma mulher? O
que é a família? Essas são perguntas ligadas a creches, adoção e direitos dos gays. E elas têm raízes e
ecos religiosos. Nós temos a tendência a discutir questões religiosas com frequência."
A volta das discussões religiosas
não surpreende o professor de
história e ciências humanas Wilfred M. McClay, da Universidade
do Tennessee. "Até o século 20,
precisávamos de proteção contra
os excessos da religião", disse ele.
"Agora enxergamos a necessidade de um equilíbrio maior, contra
o secularismo puro, que não possui base provável para afirmar a
dignidade humana." McClay é
co-editor de "Religion Returns to
the Public Square: Faith and Policy in America" (A Religião Volta
ao Espaço Público: Fé e Política na
América), livro a ser lançado em
novembro em que se discutem o
papel ampliado das instituições
religiosas na educação e no bem-estar e questões como a relação do
islã com os valores americanos, à
sombra de 11 de setembro.
Seu co-editor, Hugh Heclo, professor da Universidade George
Mason, observa que foi apenas no
século 20 que a religião foi se tornando um assunto cada vez mais
privado. Antes disso, a premissa
generalizada era de que existia
uma conexão direta entre religião
e política pública, especialmente
no tocante a questões como a lei
seca, o trabalho infantil, a escravidão e os direitos das mulheres.
Era um ambiente profundamente diferente daquele vigente
em 1960, quando o católico John
F. Kennedy candidatou-se à Presidência e foi obrigado a garantir
ao público que respeitava a divisão entre igreja e Estado.
Em 1962, a Suprema Corte proibiu as orações obrigatórias nas escolas e, em 1963, a leitura da Bíblia
em escolas públicas.
Hoje, segundo Heclo, o pêndulo
atingiu o outro extremo. Mais do
que em qualquer momento desde
os anos 70, as pessoas estão abertas a ouvir opiniões religiosas sendo expressas por autoridades públicas e a ver a religião sendo promovida pelo governo. "Não é o
velho debate sobre valores da
época das guerras culturais, mas
algo como "o que, a nosso ver, é a
base para se decidir se uma coisa
está certa ou errada?" Isso é inescapável, se você representa uma
democracia em que as pessoas
acreditam em Deus."
Muitos cientistas sociais e acadêmicos vêem como receio o aumento do papel da religião na vida pública. Não surpreende que o
façam. "A religião vem se intrometendo em áreas muito preocupantes", disse Paul Kurtz, presidente do Center for Inquiry, um
grupo secular humanista que se
dedica a pesquisas.
Professor emérito de filosofia na
Universidade Estadual de Nova
York, Kurtz declarou: "A ingerência da religião na ciência, com a
proibição da clonagem, envolve a
censura da pesquisa científica em
nome da moralidade religiosa. É a
volta à época de Galileu."
Tradução de Clara Allain
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