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INTOLERÂNCIA
Ataques contra políticas de Israel revelam ressurgimento do anti-semitismo nos países árabes e na Europa
Anti-sionismo disfarça novo anti-semitismo
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS
O recente discurso no qual Mahatir Mohamad, primeiro-ministro da Malásia, acusou os judeus
de dominarem o mundo por procuração e encorajou os muçulmanos a unirem-se para combatê-los
causou surpresa apenas àqueles
que não acompanharam sua carreira pregressa e aos que ignoram
o crescimento exponencial, durante os últimos decênios, do anti-semitismo no mundo islâmico,
que reúne um quinto da humanidade.
A Malásia é um país asiático de
cerca de 20 milhões de habitantes.
Entre estes, se é que existem, os
judeus devem ser no máximo alguns poucos indivíduos. Quando
eclodiu a crise financeira asiática
dos anos 1990, ele a atribuiu publicamente aos judeus e, em especial, ao financista internacional (e
judeu) George Soros.
O recente discurso, pronunciado diante dos líderes dos 57 países
que compõem a Organização da
Conferência Islâmica, foi aplaudido entusiasticamente e sem ressalvas. Isso, em poucas palavras,
quer dizer que quase 30% dos
membros da ONU de alguma forma endossam acusações que, não
obstante terem sido comuns na
Europa do entre-guerras e, constituindo o núcleo das doutrinas
oficiais da Alemanha nazista, terem servido de justificativa ideológica do Holocausto, pareciam,
após 1945, desterradas das conversas respeitáveis no mundo civilizado e relegadas a malucos ou
fanáticos de extrema direita ou de
extrema esquerda.
De todo o vasto mundo islâmico, era somente seu núcleo árabe
que abrigava comunidades judaicas significativas até que, na virada dos anos 1940/50, elas foram
vitimadas por uma purificação étnica praticamente completa. Antes desta, o tratamento que lhes
era dado oscilou no correr dos séculos entre a tolerância e as perseguições, mas foi, no geral, melhor
do que aquele que, antes do século 19, lhes reservara a Europa cristã. Os estatuto dos judeus em terras islâmicas era, como aliás o dos
cristãos de lá, o de "dhimmis", ou
seja, cidadãos de segunda classe,
obrigados a pagar impostos especiais e detentores de menos direitos. Não pesava sobre eles, no entanto, o estigma de "deicidas", de
assassinos de Cristo, que subjazia
ao anti-semitismo cristão.
A situação começou a mudar
em meados do século 19, quando,
ao mesmo tempo em que se desenvolvia na Europa um anti-semitismo mais racial que religioso,
os contatos desta com o Oriente
Médio permitiram-lhe contaminar as terras islâmicas. Os judeus
da cristandade vinham sendo
acusados desde a Idade Média de
cometerem o assassinato ritual de
cristãos para, com seu sangue,
preparar o matzá, o pão ázimo
das cerimônias religiosas. A morte, em 1840, de um monge capuchinho em Damasco, que pertencia então ao Império Otomano,
serviu de estopim ao primeiro
grande processo de assassinato ritual conduzido contra os judeus
da região. Se bem que os réus tenham sido inocentados, a lenda
macabra não só não desapareceu,
como criou raízes.
O atual ministro da Defesa da
Síria, o marechal Mustafá Tlass,
um dos fundadores do partido
Baath, que monopoliza há décadas o poder no país, publicou, em
1983, um livro chamado "O Matzá
de Sião", no qual reafirma as acusações originais e as estende ao
restante do povo judeu. Seu livro
foi várias vezes reeditado e traduzido para diversas línguas. Como
"Os Protocolos dos Sábios do
Sião" (um tratado que, forjado
em 1905 pela polícia secreta tzarista, pretende ser uma espécie de
relatório às lideranças judaicas, os
"sábios do Sião", sobre o progresso de seus planos de dominarem o
mundo), o livro de Tlass circula
ampla e livremente pelo mundo
árabe-islâmico alimentando tanto artigos de jornal e editoriais na
imprensa oficialmente controlada
quanto aulas nas escolas, sermões
em inúmeras mesquitas e até
mesmo séries de TV.
Se uma parcela dessa animosidade pode ser atribuída ao conflito militar entre israelenses e árabes, bem como ao trauma que os
árabes sofreram por terem sido
sucessivamente derrotados por
Israel, nem todo esse sentimento
advém de algo que, afinal, é uma
disputa territorial relativamente
modesta e geograficamente circunscrita. Ademais, o anti-semitismo muçulmano, em vez de diminuir, intensificou-se nos anos
90, isto é, precisamente na época
em que os acordos de paz assinados em Oslo apontavam para
uma solução pacífica, consensual
e, sobretudo, racional da contenda. Acontece que, nos países vizinhos a Israel, mesmo naqueles
que, como o Egito ou a Jordânia,
haviam estabelecido com ele relações diplomáticas (pois a maioria
dos países árabes ainda não reconheceu oficialmente o Estado judeu), a rejeição à presença ali de
uma nação não-muçulmana, a
demonização dos habitantes desta, as teorias de conspiração e os
mitos mais sanguinários assumiram proporções epidêmicas.
Um dos primeiros livros a chamarem a atenção para tal estado
de coisas foi "Semitas e Anti-semitas" (1986), do arabista britânico radicado nos EUA Bernard Lewis. Ele denunciava uma campanha promovida de cima para baixo, nos países árabes, por governo, intelectualidade e clero, mas
seu veredicto então era cautelosamente otimista, pois, a seu ver, a
maioria da população ainda não
introjetara a propaganda e, talvez,
uma solução do conflito territorial interromperia o processo em
questão. Não foi o que sucedeu, e
há, para tanto, uma multiplicidade de explicações.
O nacionalismo árabe e o quanto este podia ter de modernizador
entraram em crise com a derrota
na guerra árabe-israelense de
1967. O desempenho das economias da região, mesmo as que dispõem de petróleo, esteve substancialmente abaixo da média mundial, enquanto uma das maiores
explosões populacionais gerou
milhões de jovens desempregados, frustrados e sem expectativas. A decorrência foi um terreno
fértil para um renascimento religioso do qual as vertentes mais radicais, como o wahabismo financiado e propagado pela Arábia
Saudita, souberam se aproveitar.
Problema europeu
Essas frustrações oriundas do
Oriente Médio combinaram-se
com um problema recente e especificamente europeu, a saber, a
presença de milhões de muçulmanos, principalmente magrebinos (norte-africanos), que vêm
formando uma minoria substancial e que os países do continente
não têm se mostrado capazes de
aceitar de fato ou de assimilar enquanto parte integral de suas populações.
O fim dos assim chamados "30
anos gloriosos ", durante os quais
as economias européias cresceram quase ininterruptamente,
ocorreu na década de 90. Os resultados imediatos, como o desemprego e a falta de oportunidades
para os jovens, afetaram mais intensa e imediatamente os imigrantes e seus filhos, fazendo deles presas fáceis para os pregadores fundamentalistas. O colapso,
entre 1989 e 1991, do bloco comunista deixou a esquerda continental, sem uma causa clara a defender. Procurando um novo eleitorado, ela acabou encontrando os
imigrantes muçulmanos. A defesa e a cooptação destes pela esquerda se deu sob o rótulo, inicialmente bem-intencionado, do
anti-racismo. Esse ativismo, contudo, levou a esquerda a, como se
diz na França, "angelizar" as vítimas cujo partido tomara, ignorando que muitas delas vinham
também absorvendo o fundamentalismo religioso e o anti-semitismo veiculado nas mesquitas,
pelos meios de comunicação e,
cada vez mais, pela internet.
A esquerda já vinha nutrindo, a
partir dos anos 60, uma antipatia
crescente por Israel. É difícil recordá-lo hoje em dia, mas depois
da devastação do Holocausto, até
a Guerra dos Seis Dias, Israel havia sido uma causa popular nos
meios progressistas. Antes de
1967, os judeus conseguiram melhorar sua imagem convertendo-se em israelenses, cidadãos de
uma pequena democracia sitiada
num mar de tiranias retrógradas.
Após essa data, a "causa árabe",
vinculada a governos cruéis, corruptos e militarmente incompetentes, metamorfoseou-se na
"causa palestina". Os palestinos
passaram a ser chamados de "novos judeus", e aos israelenses se
colou o rótulo de sionistas, um rótulo ao qual se associaram insistentemente ecos de racismo e
opressão. Conforme a causa palestina se tornava sacrossanta entre os esquerdistas em geral, os
sionistas principiaram, primeiro,
a ser considerados e, agora, a ser
abertamente chamados de "novos nazistas".
Na década que passou, as críticas legítimas à política israelense
se consolidaram sob a forma de
anti-sionismo, um movimento
que, no limite, nega aos judeus os
direito de terem seu próprio país e
se torna, portanto, difícil de distinguir do anti-semitismo puro e
simples. O ápice desse processo
foi alcançado em agosto/setembro de 2001, quando a Conferência Mundial contra o Racismo das
Nações Unidas, em Durban, na
África do Sul, foi convertida por
governos e ONGs num gigantesco
fórum dedicado sobretudo à condenação de Israel.
Foi nesse fórum que a "nação
dos judeus" se tornou efetivamente "o judeu entre as nações",
um fenômeno que teria provavelmente garantido, com o isolamento de Israel, a vitória das reivindicações maximalistas da segunda Intifada se, poucos dias
mais tarde, Osama bin Laden não
tivesse, com seus atentados em
solo americano, alterado o caráter
da conflagração no Oriente Médio, fazendo dela um conflito
mundial.
Seja no mundo islâmico, seja na
Europa, seja nos EUA, os dois
anos seguintes, radicalizando os
sentimentos e os debates, trouxeram à luz do dia problemas que,
não muito antes, eram descartados como secundários. O anti-semitismo do mundo islâmico e seu
complemento europeu, que tem
se manifestado na depredação de
sinagogas, agressão a judeus etc.,
estão finalmente sendo reconhecidos, abordados e, aos poucos,
também combatidos, como a
profunda patologia sócio-política
que são. Qualquer que seja, a solução não é para amanhã, mas
que na França, país que, na Europa, é o epicentro desses problemas, autores renomados como
Bernard-Henri Lévy ou Alain Finkielkraut tenham publicado livros
corajosos de denúncia é, no mínimo, um sinal auspicioso.
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