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ARTIGO
Os EUA podem bancar o preço da vitória?
PAUL KENNEDY
O mundo acaba de fazer uma
retrospectiva do 11 de Setembro.
Enquanto isso, outro aniversário
-diferente, mas correlato-
também merece ser objeto de
nossa reflexão. Foi há quase um
ano que o governo Bush emitiu
seu hoje famoso documento intitulado ""A Estratégia de Segurança
Nacional dos Estados Unidos da
América". A intenção era que fosse uma afirmação clara e abrangente da política externa norte-americana pós-Guerra Fria, pós-11 de Setembro, algo que pudesse
prever desafios futuros e cobrir
todas as contingências possíveis.
Passados 12 meses -e eles estão
entre os 12 meses mais turbulentos da história moderna-, o momento se presta a uma avaliação
tentativa da situação.
A Estratégia de Segurança Nacional era surpreendentemente
holística em algumas partes, diante da visão prevalecente na mídia
mundial de que o governo Bush
tinha uma pauta estreita, unilateralista e militarista. O documento
falava em tendências globais urgentes tais como danos ambientais, pressões demográficas e migratórias, crescente pobreza e falhas na área dos direitos humanos. E ele reconhecia a necessidade de se trabalhar com e por meio
de organizações internacionais
para enfrentar essas crises.
Mas, se o ano que passou constitui algum indicativo válido, seremos obrigados a concluir que o
documento é muito mais um artifício retórico do que um compromisso sério assumido com a ação.
É verdade que houve o pedido
bem-vindo da Casa Branca de bilhões de dólares adicionais para o
combate à Aids na África, e também é verdade que os EUA agora
pagam sua contribuição anual à
ONU. Mas tanto o governo Bush
quanto o Congresso permanecem
neuroticamente desconfiados de
qualquer acordo, organismo ou
ação internacional que seja capaz
de prejudicar a preciosa ""soberania" americana. E suas contribuições para a assistência ao desenvolvimento no exterior, em termos de porcentagem do Produto
Nacional Bruto, continuam as
menores entre todos os países
adiantados. A ""trilha sonora" da
Estratégia de Segurança Nacional
pode ter uma única melodia para
todo o mundo, mas a banda nacional está fora do tom.
É claro que os EUA não são o
único país cujo governo diz uma
coisa e faz outra. Se fôssemos criar
um Índice Global de Hipocrisia,
os EUA provavelmente ficariam
na metade da escala, bem abaixo
de China, Rússia, Arábia Saudita,
França, Líbia, Coréia do Norte e
outros países. É lamentável que a
maior potência do mundo manifeste uma distância tão grande entre suas palavras e suas ações, e
mais lamentável ainda quando
seu presidente afirma que o
"american way" é o melhor modelo de sucesso nacional. Qualquer pessoa familiarizada com
Maquiavel e outros realistas (Bismarck ou Kissinger, por exemplo) saberá que tais afirmações
constituem uma falha comum. As
grandes potências com frequência precisam cometer atos indesejáveis e assumir compromissos
constrangedores.
Outros aspectos da Estratégia
de Segurança Nacional parecem
ser muito mais questionáveis. Comecemos pela afirmativa de que
os EUA pretendem manter-se tão
à frente de qualquer rival possível
em termos de hegemonia mundial que seria inútil e desaconselhável qualquer outro país sequer
cogitar em lhe lançar um desafio.
Como nenhum outro país ou entidade política tem condições econômicas de gastar US$ 400 bilhões por ano com suas forças militares, como fazem os EUA, os
inimigos e rivais americanos vão
recorrer a métodos assimétricos
de agressão. Os ataques da Al
Qaeda em 2001 e as emboscadas a
soldados americanos no Iraque e
no Afeganistão são exemplos óbvios. Quanto mais o Pentágono
injetar dinheiro em novos caças,
mais seus adversários optarão por
uma guerra irregular e obscura. E,
embora as potências em ascensão
que são a China e a Índia possam
não tentar combater os EUA em
alto-mar, elas poderão -se movidas pelo ressentimento em relação à hegemonia americana-
sentir a necessidade de desenvolver um meio mais sofisticado para impedir as frotas americanas
de se aproximarem das costas
asiáticas. Dentro de alguns anos, a
potência hegemônica terá de refletir com cuidado antes de enviar
um porta-aviões de batalha para o
estreito de Taiwan. Dinheiro nem
sempre compra segurança.
Outro aspecto questionável do
documento é a afirmação confiante que ele faz de que os EUA,
sempre que necessário, adotarão
ações preventivas para esmagar
possíveis ameaças do exterior
(embora avise outros países de
que eles próprios não devem recorrer a medidas preventivas).
Deixando de lado a natureza dúbia da doutrina no direito internacional, tal estratégia é, em termos práticos, difícil de praticar
com acerto. O ataque anglo-americano ao Iraque é um exemplo. O
governo americano, atolado na
guerra de guerrilha em todo o território iraquiano, agora tenta convencer outros países a ajudar a pacificar e reconstruir esse país devastado. Agir por conta própria,
agir de maneira preventiva, preterir as soluções diplomáticas às militares, tudo isso parece ser o estratagema duvidoso de um país
que quer manter sua posição privilegiada nas questões mundiais.
Menos soberba e mais paciência
seriam uma combinação melhor.
Finalmente, há o problema da
vitória ""a qualquer preço". Depois que a guerra começou, o subsecretário da Defesa Paul Wolfowitz disse que o Iraque financiaria
sua própria reconstrução, e em
relativamente pouco tempo.
Quão irônica soa essa declaração
agora! O presidente Bush pediu
ao Congresso uma verba adicional de US$ 87 bilhões para financiar a reconstrução civil e a segurança militar no Iraque e Afeganistão. Essas verbas maciças vão
aumentar o desnível já assustador
entre a receita e as despesas federais e conferir ao Partido Democrata, até agora tão acovardado,
uma chance de atacar o líder imperial. Essa vulnerabilidade explica a relutante decisão de devolver
a questão do Iraque ao Conselho
de Segurança da ONU, na esperança de conseguir doadores e
tropas de países como Alemanha,
Rússia, França e Índia.
Em suma, a Estratégia de Segurança Nacional não está se saindo
bem. Ela bateu de frente com a
realidade. Ninguém de boa vontade deseja qualquer mal às forças
americanas e suas aliadas no Iraque, e todos certamente torcem
pela chegada da democracia,
prosperidade e paz àquele país tão
problemático. Existem malfeitores que procuram frustrar essas
metas, e esses malfeitores precisam ser derrotados. Mas os avisos
feitos antes da invasão estão mostrando ter fundamento. A aposta
iraquiana do presidente Bush virou um suplício em Bagdá.
O 11 de Setembro foi lembrado
com dignidade, graça e determinação. Mas isso não nos exime de
cobrar aqueles que nos asseguraram ter um mapa e uma grande
estratégia para conduzir a América em segurança pelo século 21.
Paul Kennedy é professor de história na Universidade Yale e autor de "Ascensão
e Queda das Grandes Potências" (Campus)
Tradução de Clara Allain
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