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DIREITOS HUMANOS
Além do vácuo jurídico, detidos na guerra ao terror enfrentam violência, delação, abusos e indiferença
EUA criam "inferno" em campos de presos
MICHAEL SONTHEIMER
DA "DER SPIEGEL", EM LONDRES
Desde o 11 de Setembro, os direitos humanos e o Estado de Direito vêm sendo sacrificados à
guerra contra o terror. Enquanto
o Exército americano termina de
erguer sua nova prisão em Guantánamo, o Campo Delta, em substituição ao Campo X-Ray, duramente criticado pelos grupos de
direitos humanos, o que se passa
em outros campos é ainda mais
brutal, como no Afeganistão.
Najeeb al Nauimi, de Qatar, é o
advogado que melhor conhece as
condições presidiárias das quase
mil pessoas aprisionadas pelo
Exército americano sob suspeita
de ação terrorista. O ex-ministro
da Justiça de Qatar, Estado da região do Golfo, defende 96 homens
que estão ou foram encarcerados
em Campo Delta, na ilha de Cuba.
Das cartas dos presos e das conversas com seus parentes ele extraiu o seguinte quadro: embora
as condições presidiárias ali não
satisfaçam os padrões internacionais, em comparação com o campo de prisioneiros na base militar
americana de Bagram, no Afeganistão, ele vê Campo Delta quase
como uma casa de repouso. "Todos os meus clientes que antes estiveram encarcerados no Afeganistão", diz Al Nauimi, "relataram
que eles haviam escapado do inferno."
Moazzam Begg, da cidade inglesa de Birmingham, escreveu à sua
família que ele, em Bagram, fora
mantido durante um ano dentro
de um velho contêiner de navio,
em solitária. Assim, na base militar a 50 quilômetros ao norte de
Cabul, o pai de quatro crianças só
vira a luz do dia, nessa época, durante dois minutos. No verão, escreveu ele, sua masmorra pululava de aranhas-camelos decápodes, "que eram maiores do que
um palmo, se movimentavam como carros de corrida e, tão logo
picavam alguém, a carne da vítima começava a apodrecer, se ele
não fosse tratado".
"Os piores entre os piores"
Moazzam Begg é um daqueles
homens muçulmanos que atualmente o Exército americano mantém presos por tempo ilimitado,
classificados como "combatentes
ilegais" -um neologismo não-jurídico com que se contornam numerosos tratados do direito internacional. Não reconhecidos como
prisioneiros de guerra segundo as
Convenções de Genebra, os aprisionados não podem receber visita nem de parentes nem de advogados. Cartas entre eles e suas famílias ficam a meio caminho por
meses, se conseguem de modo geral passar pela censura. Com os
termos de "claro atentado contra
princípios fundamentais do direito internacional", uma alta corte
britânica condenou o confinamento ilimitado sem acusação
formal e sem assistência jurídica.
Donald Rumsfeld, por sua vez,
insiste em que o tratamento dos
prisioneiros é "normal e humano". Afinal, esses homens seriam
"os piores entre os piores". O secretário da Defesa americano concebe o campo de prisioneiros, na
terra de ninguém jurídica, como
arma duradoura na guerra contra
o terrorismo. O Pentágono mandou reconstruir e aumentar Campo Delta e ordenou a nomeação
de comitês militares para a condenação dos prisioneiros.
Em junho, segundo relataram
jornais britânicos, o Pentágono
concedeu a permissão para que
fosse construído uma área dedicada à execução de presos, por US$
7,8 milhões.
Na sala de execução, na qual se
encontra somente uma cadeira
maciça, à qual são afivelados os
condenados , os delinquentes devem receber sua injeção fatal. Deve construir o complexo uma firma da cidade texana de Houston:
uma empresa irmã do grupo Haliburton, que Dick Cheney presidia,
antes de se tornar o vice-presidente. A Haliburton já recebeu vários
contratos para a reconstrução do
Iraque.
Interpretação jurídica
Cada vez mais desesperados, os
familiares dos prisioneiros que
desapareceram nessa rede de gulags não recebem quase nenhum
apoio dos seus respectivos governos. "Eles diziam que não sabiam
de nada", relata Azmat Begg a respeito de suas repetidas conversas
com funcionários da Chancelaria
em Londres sobre a situação do
parente Moazzam Begg, preso em
Bagram. Ninguém quer se "sujar"
com os poderosos americanos,
confirma o advogado Najeeb al
Nauimi: "Os ditadores árabes
querem todos se oferecer a Bush".
Quando os primeiros prisioneiros chegaram a Cuba, em 11 de janeiro do ano passado, eles foram
encerrados em jaulas de arame
farpado erguidas à pressa, nas
quais eles eram expostos ao sol
tropical e às pancadas de chuva.
Os arames farpados de Guantánamo, o território que os EUA arrendaram de Cuba em 1903, converteram-se em símbolo da nova
compreensão jurídica norte-americana. Um repórter do "New
York Times" descreveu o campo
como "o novo gulag americano".
Em vista da crítica internacional
ao enjaulamento, o Pentágono
mandou reconstruir o Campo
Delta. O novo campo, situado a
sudeste da base militar, aloja
atualmente cerca de 665 prisioneiros de 43 nações, que falam 17 línguas diferentes. Nele, a maioria
dos cativos fica em celas individuais de 2 m por 2,5 m, com paredes feitas de grade de aço. Duas
vezes por semana os prisioneiros,
vestidos com uniformes cor de laranja reluzente, podem tomar banho e andar por 15 minutos em
jaulas de dez metros de comprimento. No entanto, assim que eles
deixam suas celas, seus pés são
acorrentados, e as mãos, algemadas ao cinto.
A direção do campo refere-se
orgulhosa ao fato de que, nas celas, a direção em que está Meca é
apontada com uma seta, que os
prisioneiros possuem Alcorão e
que são chamados à reza cinco vezes ao dia pelo rádio do campo. A
cozinha elabora apenas carne de
animais abatidos segundo os preceitos muçulmanos.
"Golpe fatal"
Para George W. Bush, os aprisionados em Cuba são simplesmente "assassinos". Mas Campo
Delta, que foi visitado pelos delegados da Cruz Vermelha Internacional, não é, de modo algum,
apesar disso, o pior campo de
confinamento do Exército americano. Nos centros de interrogatório no Afeganistão, desde dezembro passado, já morreram três prisioneiros. Os homens de alto escalão da Al Qaeda desaparecem totalmente do mapa, sendo obviamente transferidos para especialistas dos serviços secretos de países árabes amigos.
Em dezembro do ano passado,
um taxista de 22 anos de idade jazia morto em sua cela em Bagram,
cinco dias após sua detenção. Antes dele, o irmão de um ex-comandante do Taleban já havia
morrido por causa de um coágulo
sanguíneo no pulmão. Nos dois
casos, foram diagnosticados nos
atestados de óbito, apresentados
por uma patologista do Exército
americano, "ferimentos com objetos arredondados", e foi anotado, como causa da morte, "golpe
fatal".
Um ex-prisioneiro relatou que o
taxista, doente do coração, havia
entrado em pânico, visto que ele
não conseguia respirar sob o capuz. Um outro, que o viu em sua
cela, recorda que "seu rosto estava
escurecido".
Dois outros detentos declararam após serem libertados que,
no centro de interrogatório da
CIA, eles tinham de ficar em pé,
nus, durante dias, com os olhos
vendados e acorrentados. Na sala,
gélida à noite, eles eram impedidos de dormir com holofotes e
pontapés. As algemas dos pés foram tão apertadas que eles começaram a inchar e a perder sensibilidade.
O Pentágono ordenou uma investigação dos dois casos de morte de Bagram. Mas, enquanto seu
resultado continua pendente, no
final de junho um outro prisioneiro morreu na base do Exército
americano em Asadabad, na Província de Kunar, em circunstâncias ainda não explicadas.
"Soltar a língua"
O jornalista norte-americano
Bob Woodward, célebre por ter
participado da revelação do escândalo Watergate, descobriu,
junto com colegas do "Washington Post", que a CIA construiu um
reino de trevas ultra-secreto para
suspeitos de terrorismo, no qual,
por exemplo, o dirigente da Al
Qaeda Khalid Sheik Mohammed,
além de dois de seus filhos, desapareceu sem deixar vestígio. Outros quadros importantes da Al
Qaeda, a maior parte capturada
no Paquistão, foram examinados
em um centro de interrogatório
em Diego Garcia, uma ilha solitária no oceano Índico.
A Cruz Vermelha Internacional
pediu um esclarecimento ao governo norte-americano, mas até
agora não recebeu nenhuma resposta. O mesmo se passou com a
Anistia Internacional, que em
Washington buscou informações
sobre o paradeiro de cinco desaparecidos.
A organização representante
dos direitos humanos está
apreensiva com a possibilidade de
os agentes norte-americanos terem repassado prisioneiros a especialistas em tortura de serviços
secretos de países árabes amigos.
A Anistia parte dos rumores de
que prisioneiros foram arrastados
pelos serviços secretos americanos para Marrocos, Jordânia e
Egito. Um homem da inteligência
dos EUA, que organizaria essas
transações, justificou esse procedimento aos repórteres do Washington Post: "Nós não soltamos
as línguas deles. Nós os enviamos
a outros países para que soltem as
línguas deles". Um outro disse:
"Se não ferirmos momentaneamente os direitos humanos, nós
não faremos nosso trabalho".
Tâmaras para quem fala
Em 4 de julho, Bush declarou,
por ocasião do feriado nacional
americano: "Todos os que hoje vivem sob tirania e anseiam por liberdade depositam suas esperanças de liberdade nos Estados Unidos da América". Um dia antes, o
presidente havia dado sinal verde
para que os primeiros seis prisioneiros de Guantánamo fossem
colocados perante um comitê militar, cuja formação Donald
Rumsfeld havia ordenado em
março de 2002. Moazzam Begg,
de Birmingham, está nesse primeiro grupo de acusados, assim
como um outro britânico e o australiano David Hicks.
O suplente de Rumsfeld, Paul
Wolfowitz, é responsável pelo recrutamento de promotores, defensores e juízes. Mesmo os membros do comitê de apelação foram
nomeados por ele. Em última instância, o presidente Bush poderia
indultar os condenados à morte,
mas, uma vez que ele assinou 151
sentenças de morte como governador do Texas e só em um único
caso adiou a execução, os prisioneiros não devem esperar pelo
perdão presidencial.
Os comitês militares, que estão
na tradição dos tribunais militares que fizeram processos sumários na Segunda Guerra Mundial
com espiões alemães e japoneses,
foram criticados não só por juristas em todo o mundo, mas também por defensores dos direitos
civis e advogados dos EUA. Mesmo a revista britânica "Economist", que apoiou as campanhas
de Bush no Afeganistão e no Iraque, critica os processos em comitês militares, qualificando-os de
"injustos, imprudentes e não-americanos". A influente publicação profetiza que eles se revelarão
"contraproducentes para a guerra
contra o terrorismo".
O secretário de Estado, Colin
Powell, solicitou em uma carta a
Rumsfeld, em abril, que reconhecesse os confinados como prisioneiros de guerra. Mas seus rivais
no Pentágono não querem saber
disso.
O salão dos iminentes tribunais
já está mobiliado e, junto com a
planejada câmara de execução,
aparentemente não deixa de ter o
seu efeito. Desse modo, o comandante do Campo Delta, general
Geoffrey Miller, relatou que o número das informações relevantes
para o serviço secreto que seus interrogadores receberam dos confinados multiplicou-se por seis.
Graças a "interrogatórios baseados em incentivos", ele tem agora
"um grande número de prisioneiros que são muito cooperativos" e
incriminam outros.
"O caminho para casa", está escrito em placas penduradas em
toda parte do campo, "passa pela
verdade e pela cooperação completa". Quem desembucha corretamente no Campo Delta é transferido a uma divisão em que há
contato com outros prisioneiros
várias horas ao dia e, regularmente, tâmaras e sorvetes.
Tradução de Luiz Repa
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