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São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2003

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DIREITOS HUMANOS

Além do vácuo jurídico, detidos na guerra ao terror enfrentam violência, delação, abusos e indiferença

EUA criam "inferno" em campos de presos

MICHAEL SONTHEIMER
DA "DER SPIEGEL", EM LONDRES

Desde o 11 de Setembro, os direitos humanos e o Estado de Direito vêm sendo sacrificados à guerra contra o terror. Enquanto o Exército americano termina de erguer sua nova prisão em Guantánamo, o Campo Delta, em substituição ao Campo X-Ray, duramente criticado pelos grupos de direitos humanos, o que se passa em outros campos é ainda mais brutal, como no Afeganistão.
Najeeb al Nauimi, de Qatar, é o advogado que melhor conhece as condições presidiárias das quase mil pessoas aprisionadas pelo Exército americano sob suspeita de ação terrorista. O ex-ministro da Justiça de Qatar, Estado da região do Golfo, defende 96 homens que estão ou foram encarcerados em Campo Delta, na ilha de Cuba.
Das cartas dos presos e das conversas com seus parentes ele extraiu o seguinte quadro: embora as condições presidiárias ali não satisfaçam os padrões internacionais, em comparação com o campo de prisioneiros na base militar americana de Bagram, no Afeganistão, ele vê Campo Delta quase como uma casa de repouso. "Todos os meus clientes que antes estiveram encarcerados no Afeganistão", diz Al Nauimi, "relataram que eles haviam escapado do inferno."
Moazzam Begg, da cidade inglesa de Birmingham, escreveu à sua família que ele, em Bagram, fora mantido durante um ano dentro de um velho contêiner de navio, em solitária. Assim, na base militar a 50 quilômetros ao norte de Cabul, o pai de quatro crianças só vira a luz do dia, nessa época, durante dois minutos. No verão, escreveu ele, sua masmorra pululava de aranhas-camelos decápodes, "que eram maiores do que um palmo, se movimentavam como carros de corrida e, tão logo picavam alguém, a carne da vítima começava a apodrecer, se ele não fosse tratado".

"Os piores entre os piores"
Moazzam Begg é um daqueles homens muçulmanos que atualmente o Exército americano mantém presos por tempo ilimitado, classificados como "combatentes ilegais" -um neologismo não-jurídico com que se contornam numerosos tratados do direito internacional. Não reconhecidos como prisioneiros de guerra segundo as Convenções de Genebra, os aprisionados não podem receber visita nem de parentes nem de advogados. Cartas entre eles e suas famílias ficam a meio caminho por meses, se conseguem de modo geral passar pela censura. Com os termos de "claro atentado contra princípios fundamentais do direito internacional", uma alta corte britânica condenou o confinamento ilimitado sem acusação formal e sem assistência jurídica.
Donald Rumsfeld, por sua vez, insiste em que o tratamento dos prisioneiros é "normal e humano". Afinal, esses homens seriam "os piores entre os piores". O secretário da Defesa americano concebe o campo de prisioneiros, na terra de ninguém jurídica, como arma duradoura na guerra contra o terrorismo. O Pentágono mandou reconstruir e aumentar Campo Delta e ordenou a nomeação de comitês militares para a condenação dos prisioneiros.
Em junho, segundo relataram jornais britânicos, o Pentágono concedeu a permissão para que fosse construído uma área dedicada à execução de presos, por US$ 7,8 milhões.
Na sala de execução, na qual se encontra somente uma cadeira maciça, à qual são afivelados os condenados , os delinquentes devem receber sua injeção fatal. Deve construir o complexo uma firma da cidade texana de Houston: uma empresa irmã do grupo Haliburton, que Dick Cheney presidia, antes de se tornar o vice-presidente. A Haliburton já recebeu vários contratos para a reconstrução do Iraque.

Interpretação jurídica
Cada vez mais desesperados, os familiares dos prisioneiros que desapareceram nessa rede de gulags não recebem quase nenhum apoio dos seus respectivos governos. "Eles diziam que não sabiam de nada", relata Azmat Begg a respeito de suas repetidas conversas com funcionários da Chancelaria em Londres sobre a situação do parente Moazzam Begg, preso em Bagram. Ninguém quer se "sujar" com os poderosos americanos, confirma o advogado Najeeb al Nauimi: "Os ditadores árabes querem todos se oferecer a Bush".
Quando os primeiros prisioneiros chegaram a Cuba, em 11 de janeiro do ano passado, eles foram encerrados em jaulas de arame farpado erguidas à pressa, nas quais eles eram expostos ao sol tropical e às pancadas de chuva. Os arames farpados de Guantánamo, o território que os EUA arrendaram de Cuba em 1903, converteram-se em símbolo da nova compreensão jurídica norte-americana. Um repórter do "New York Times" descreveu o campo como "o novo gulag americano".
Em vista da crítica internacional ao enjaulamento, o Pentágono mandou reconstruir o Campo Delta. O novo campo, situado a sudeste da base militar, aloja atualmente cerca de 665 prisioneiros de 43 nações, que falam 17 línguas diferentes. Nele, a maioria dos cativos fica em celas individuais de 2 m por 2,5 m, com paredes feitas de grade de aço. Duas vezes por semana os prisioneiros, vestidos com uniformes cor de laranja reluzente, podem tomar banho e andar por 15 minutos em jaulas de dez metros de comprimento. No entanto, assim que eles deixam suas celas, seus pés são acorrentados, e as mãos, algemadas ao cinto.
A direção do campo refere-se orgulhosa ao fato de que, nas celas, a direção em que está Meca é apontada com uma seta, que os prisioneiros possuem Alcorão e que são chamados à reza cinco vezes ao dia pelo rádio do campo. A cozinha elabora apenas carne de animais abatidos segundo os preceitos muçulmanos.

"Golpe fatal"
Para George W. Bush, os aprisionados em Cuba são simplesmente "assassinos". Mas Campo Delta, que foi visitado pelos delegados da Cruz Vermelha Internacional, não é, de modo algum, apesar disso, o pior campo de confinamento do Exército americano. Nos centros de interrogatório no Afeganistão, desde dezembro passado, já morreram três prisioneiros. Os homens de alto escalão da Al Qaeda desaparecem totalmente do mapa, sendo obviamente transferidos para especialistas dos serviços secretos de países árabes amigos.
Em dezembro do ano passado, um taxista de 22 anos de idade jazia morto em sua cela em Bagram, cinco dias após sua detenção. Antes dele, o irmão de um ex-comandante do Taleban já havia morrido por causa de um coágulo sanguíneo no pulmão. Nos dois casos, foram diagnosticados nos atestados de óbito, apresentados por uma patologista do Exército americano, "ferimentos com objetos arredondados", e foi anotado, como causa da morte, "golpe fatal".
Um ex-prisioneiro relatou que o taxista, doente do coração, havia entrado em pânico, visto que ele não conseguia respirar sob o capuz. Um outro, que o viu em sua cela, recorda que "seu rosto estava escurecido".
Dois outros detentos declararam após serem libertados que, no centro de interrogatório da CIA, eles tinham de ficar em pé, nus, durante dias, com os olhos vendados e acorrentados. Na sala, gélida à noite, eles eram impedidos de dormir com holofotes e pontapés. As algemas dos pés foram tão apertadas que eles começaram a inchar e a perder sensibilidade.
O Pentágono ordenou uma investigação dos dois casos de morte de Bagram. Mas, enquanto seu resultado continua pendente, no final de junho um outro prisioneiro morreu na base do Exército americano em Asadabad, na Província de Kunar, em circunstâncias ainda não explicadas.

"Soltar a língua"
O jornalista norte-americano Bob Woodward, célebre por ter participado da revelação do escândalo Watergate, descobriu, junto com colegas do "Washington Post", que a CIA construiu um reino de trevas ultra-secreto para suspeitos de terrorismo, no qual, por exemplo, o dirigente da Al Qaeda Khalid Sheik Mohammed, além de dois de seus filhos, desapareceu sem deixar vestígio. Outros quadros importantes da Al Qaeda, a maior parte capturada no Paquistão, foram examinados em um centro de interrogatório em Diego Garcia, uma ilha solitária no oceano Índico.
A Cruz Vermelha Internacional pediu um esclarecimento ao governo norte-americano, mas até agora não recebeu nenhuma resposta. O mesmo se passou com a Anistia Internacional, que em Washington buscou informações sobre o paradeiro de cinco desaparecidos.
A organização representante dos direitos humanos está apreensiva com a possibilidade de os agentes norte-americanos terem repassado prisioneiros a especialistas em tortura de serviços secretos de países árabes amigos.
A Anistia parte dos rumores de que prisioneiros foram arrastados pelos serviços secretos americanos para Marrocos, Jordânia e Egito. Um homem da inteligência dos EUA, que organizaria essas transações, justificou esse procedimento aos repórteres do Washington Post: "Nós não soltamos as línguas deles. Nós os enviamos a outros países para que soltem as línguas deles". Um outro disse: "Se não ferirmos momentaneamente os direitos humanos, nós não faremos nosso trabalho".

Tâmaras para quem fala
Em 4 de julho, Bush declarou, por ocasião do feriado nacional americano: "Todos os que hoje vivem sob tirania e anseiam por liberdade depositam suas esperanças de liberdade nos Estados Unidos da América". Um dia antes, o presidente havia dado sinal verde para que os primeiros seis prisioneiros de Guantánamo fossem colocados perante um comitê militar, cuja formação Donald Rumsfeld havia ordenado em março de 2002. Moazzam Begg, de Birmingham, está nesse primeiro grupo de acusados, assim como um outro britânico e o australiano David Hicks.
O suplente de Rumsfeld, Paul Wolfowitz, é responsável pelo recrutamento de promotores, defensores e juízes. Mesmo os membros do comitê de apelação foram nomeados por ele. Em última instância, o presidente Bush poderia indultar os condenados à morte, mas, uma vez que ele assinou 151 sentenças de morte como governador do Texas e só em um único caso adiou a execução, os prisioneiros não devem esperar pelo perdão presidencial.
Os comitês militares, que estão na tradição dos tribunais militares que fizeram processos sumários na Segunda Guerra Mundial com espiões alemães e japoneses, foram criticados não só por juristas em todo o mundo, mas também por defensores dos direitos civis e advogados dos EUA. Mesmo a revista britânica "Economist", que apoiou as campanhas de Bush no Afeganistão e no Iraque, critica os processos em comitês militares, qualificando-os de "injustos, imprudentes e não-americanos". A influente publicação profetiza que eles se revelarão "contraproducentes para a guerra contra o terrorismo".
O secretário de Estado, Colin Powell, solicitou em uma carta a Rumsfeld, em abril, que reconhecesse os confinados como prisioneiros de guerra. Mas seus rivais no Pentágono não querem saber disso.
O salão dos iminentes tribunais já está mobiliado e, junto com a planejada câmara de execução, aparentemente não deixa de ter o seu efeito. Desse modo, o comandante do Campo Delta, general Geoffrey Miller, relatou que o número das informações relevantes para o serviço secreto que seus interrogadores receberam dos confinados multiplicou-se por seis. Graças a "interrogatórios baseados em incentivos", ele tem agora "um grande número de prisioneiros que são muito cooperativos" e incriminam outros.
"O caminho para casa", está escrito em placas penduradas em toda parte do campo, "passa pela verdade e pela cooperação completa". Quem desembucha corretamente no Campo Delta é transferido a uma divisão em que há contato com outros prisioneiros várias horas ao dia e, regularmente, tâmaras e sorvetes.


Tradução de Luiz Repa

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