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Tropa da ONU é pouco para resolver crise haitiana, dizem especialistas
JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL
O Haiti é por enquanto um país
inviável. Poderá sair do fundo do
poço não apenas quando a segurança interna for restabelecida,
mas sobretudo quando reerguer
seu Judiciário e reativar serviços
de saúde, transportes e educação,
hoje em estrondoso colapso.
O diagnóstico pessimista parte
de Christian Girault, pesquisador
de América Latina e Caribe no
CNRS (Centro Nacional de Pesquisas Científicas) da França.
Em entrevista à Folha, ele disse
que as forças internacionais que o
Brasil lidera são insuficientes para
enfrentar o problema da ordem
interna num país de 7,5 milhões
de habitantes, que não tem mais
Forças Armadas e no qual a polícia não funciona.
"É mais ou menos como no Iraque, com a diferença de que, no
Haiti, os bandos armados não atacam tropas estrangeiras. Atacam-se uns aos outros, roubam, seqüestram e matam", disse.
Outros indícios da situação caótica em que o país se encontra foram dados à Folha por representantes locais de duas respeitáveis
organizações humanitárias, a Care Internacional, baseada em Bruxelas e atuando no Haiti há 50
anos, e a Terra dos Homens, com
sede na Suíça e sobretudo voltada
à saúde da população infantil.
Hugues Temple-Boyer, da Terra dos Homens, disse que o Ministério da Saúde não tem eletricidade para funcionar. Suas instalações foram saqueadas durante a
crise política que resultou, em fevereiro, na queda do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide.
Os hospitais públicos têm o essencial dos medicamentos fornecidos por organismos internacionais. Mas parte desse estoque é pilhada pelos médicos locais, que há
quatro meses não recebem salários e sobrevivem com a renda de
suas clínicas particulares.
A rede hospitalar só não deixou
de funcionar pela presença de
médicos cubanos, diz Temple-Boyer. Eles fazem um trabalho
importante, mas, por causa deles,
médicos haitianos sentem-se
pouco responsáveis e dão expediente de duração simbólica.
A subnutrição crônica entre as
crianças, embora hoje seja bem
menor que há dez anos, voltou a
crescer. Sandy Laumark, há quase
cinco anos no Haiti pela Care, diz
que entre 20% e 25% das crianças
com até cinco anos apresentam
algum grau de subnutrição. O
país só produz metade dos alimentos de que precisa.
O pior é o desencanto. De cada
dez haitianos, dois já deixaram o
país. Há uma emigração maciça
para a República Dominicana, o
Canadá e os EUA -só os americanos emitem no Haiti 45 mil vistos anuais. Essas pessoas enviam a
suas famílias de US$ 800 milhões
a US$ 1 bilhão por ano.
E não são apenas trabalhadores
braçais que se vão, diz Girault. A
própria elite arrumou as malas e
foi embora, refletindo o desencanto de pessoas com formação
técnica ou dinheiro. Há também
os que emigraram por medo. Juízes ameaçados deixaram muitos
tribunais vazios -pessoas que
nos anos 90 receberam do exterior auxílio e formação para fazerem o Judiciário funcionar.
As Forças Armadas foram dissolvidas por Aristide, tão logo ele
voltou ao poder, em 1994. Antigos
oficiais subalternos levaram armas para casa e hoje controlam o
crime organizado. A comunidade
internacional tentou, entre 1995 e
2000, dotar o Haiti de uma polícia
honesta e competente. "A violência nunca foi tão grande quanto
agora", diz Laumark, da Care.
Ela também ressalta que a corrupção é um problema endêmico.
A Transparência Internacional,
entidade especializada no tema,
classifica o Haiti como o segundo
país mais corrupto do mundo.
Temple-Boyer diz que ninguém
sabe ao certo onde foi parar o dinheiro que ingressou nos anos 90
sob a forma de ajuda humanitária. Dos países pobres, o Haiti foi
o que recebeu mais recursos per
capita. Havia ralos no funcionalismo público e em falsas ONGs.
Girault diz que a corrupção só
diminuirá se a sociedade se organizar e criar mecanismos de controle. Há um núcleo sério e preocupado com isso, formado sobretudo por lideranças católicas e
evangélicas, mas não há ainda,
propriamente, sociedade civil.
Os partidos políticos são grupos
formados em torno de indivíduos, e a população ainda está dividida entre adversários e partidários de Aristide -dono de um
discurso populista que assimilava
a presença estrangeira a uma volta da escravidão camuflada.
"Se quisermos ver um horizonte, é preciso focarmos nossa atenção nos jovens. A geração com
mais de 40 ou 50 anos sofreu muito e foi muito corrompida", diz.
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