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Manual de sobrevivência no Iraque
Jornalista brasileiro a serviço de TV dos EUA relata o dia-a-dia tenso no país e mostra o crescente ódio contra os ocidentais
MAGNUS MACEDO
FREE-LANCE PARA A FOLHA, EM BAGDÁ
Com o verão se aproximando, a
temperatura diurna sobe a cada
dia em Bagdá. E o humor do povo
iraquiano também vai se tornando mais esquentado.
A morte de quatro civis americanos em Fallujah, em abril, deflagrou uma onda de violência inédita contra os estrangeiros trabalhando no Iraque. Para todos nós,
jornalistas estrangeiros que trabalhamos no Iraque ao longo do último ano, a capacidade de executar nossas tarefas passou por dramática deterioração.
É espantosa a rapidez com que a
situação se degradou. Em pouco
mais de duas semanas, o país irrompeu em revolta, e, subitamente, era como se estivéssemos cobrindo uma nação diferente. As
políticas adotadas pelos americanos causam oposição, insurreições e protestos em todo o país e
entre os vários grupos étnicos e
religiosos. A humilhação e a tortura dos prisioneiros iraquianos
em Abu Ghraib tampouco ajudou. Na verdade, a impressão que
formei em conversa com alguns
moradores locais é que o escândalo de Abu Ghraib teve influência
terrível, talvez catastrófica, sobre
sua opinião quanto ao Ocidente.
Foi como se a última gota de paciência tivesse se esvaído.
Quando cheguei a Bagdá pela
primeira vez, em abril de 2003, o
cenário era completamente diferente. Ainda que esse caótico país
vivesse em estado de quase anarquia, nós, jornalistas, tínhamos
então muito mais liberdade de
movimento (e éramos tratados
com cortesia e respeito).
Tive a oportunidade de visitar
Abu Ghraib na época. Lá, vimos
alguns ex-presos recolhendo lembranças bizarras como cordas de
enforcar e ganchos de metal usados nas torturas.
Fizemos a visita à prisão guiados por um sujeito que passara
sete anos preso lá por assassinato.
Ele estava muito determinado a
exibir aos ocidentais as celas de
enforcamento e de tortura, bem
como os murais de Saddam Hussein pintados nas paredes das salas de guarda, exibindo o ex-ditador como um homem de paz,
com pombas nas mãos, sobre
fundo de aparência celestial. Se a
visita fosse hoje, provavelmente
terminaríamos enterrados nas valas comuns então encontradas
nos fundos da prisão.
No mesmo período, também visitei Fallujah. A visita aconteceu
apenas um dia depois que soldados americanos abriram fogo
contra manifestantes concentrados diante da antiga sede do partido Baath, matando 17 deles.
Entrevistei um médico que estava diante de um edifício ocupado
por soldados americanos, e ele
perguntou: "Quando os soldados
americanos vão partir? Quando
vão me devolver meu país? Não
temos remédios suficientes para
tratar nossos pacientes. Nem sequer temos água limpa. Nossas
escolas estão arruinadas, e nossas
crianças não podem sair à rua para brincar porque é perigoso demais. Sim, estamos felizes com a
queda de Saddam, mas nossa situação não é melhor do que no
passado. Se visse um soldado
americano do lado de fora da minha casa, cortaria sua garganta".
Medo
Em fevereiro e março deste ano,
nossas equipes podiam registrar a
explosão de uma bomba em um
hotel no centro da cidade, ou de
um carro-bomba em uma rua lotada de pessoas, ou até mesmo visitar famílias iraquianas em suas
casas. Tudo isso com segurança
razoável, ainda que limitada. Podíamos viajar a diferentes cidades
em todo o país com muito menos
medo de ataque.
Fui de Bagdá a Mossul, e a Arbil,
Nassiriah, Basra, Najaf e Karbala.
Apenas dois meses atrás, podíamos sair dos nossos carros e conversar com os moradores, o que
nos permitia obter uma impressão real do que estava acontecendo na vida deles.
Hoje, uma operação desse tipo
seria completamente impensável.
Temos de depender de operadores locais de câmera, independentes, e de repórteres rápidos e capazes de percorrer as ruas para obter
uma impressão sobre o que realmente está acontecendo.
As coisas mudaram muito, agora. Estamos restritos a viajar de
carro entre pontos predeterminados (sem paradas), visitando escritórios oficiais ou hotéis considerados neutros, para nossas entrevistas. Isso significa que podemos falar com funcionários do
governo e com executivos, mas
não com a maioria da sociedade.
As ruas do país se tornaram inseguras para nós, e nossa presença
poderia tornar as casas dos moradores inseguras para eles.
Trabalho para uma rede de televisão americana, a ABC, e nossa
segurança sempre foi motivo de
séria preocupação.
Nossa base fica em um bairro de
classe média alta chamado Karada. Nós ocupamos (uma palavra
usada com muita freqüência
aqui) três pequenos hotéis localizados em dois quarteirões de uma
rua. As vias de acesso ficam bloqueadas por blocos de concreto,
barreiras contra explosões e arame farpado. Temos seguranças
armados em prontidão 24 horas
por dia. Só há um caminho de
acesso para as nossas instalações,
protegido por uma barreira e espigões de ferro no chão.
Nossos guardas foram treinados por uma empresa de segurança britânica, que é formada basicamente por ex-oficiais e soldados das forças especiais do Exército britânico. A equipe local de segurança foi treinada para lidar
com desconhecidos que se aproximem de nossas instalações e
também instruída a checar todos
os veículos e a identidade de seus
ocupantes. As verificações incluem uma busca por explosivos
nos motores e sob os veículos.
Todos os membros da equipe
de segurança foram treinados em
procedimentos paramédicos básicos de primeiros-socorros e estímulo cardíaco. Temos palestras
semanais sobre os mais recentes
ataques na cidade e sobre maneiras de melhorar nossa segurança,
evitando exposição demasiada.
Só nos deslocamos em carros
blindados (temos cinco deles) e, a
cada vez que temos de sair, garantimos que os demais membros da
equipe, que ficam na sucursal, saibam para onde estamos indo.
Caso precisemos fazer muitas
viagens a um destino específico
durante um período de três ou
quatro dias, sempre nos asseguramos de que rotas diferentes sejam
usadas para nos conduzir até ele.
Aprendemos esses truques com
os nossos seguranças. Eles têm
um grau espantoso de conhecimento. Para não mencionar o fato
de que alguns falam árabe e passaram temporadas prolongadas no
Oriente Médio, em diversas operações militares.
Jornalistas mortos
Operar sem segurança no Iraque hoje seria uma decisão suicida para qualquer empresa ocidental. Basta apontar o imenso
número de pessoas, entre as quais
jornalistas, tomadas como reféns
ou assassinadas de maneira trágica e brutal, como Nick Berg, decapitado diante das câmeras.
A situação por aqui é tão ruim
que até mesmo as empresas de segurança sediadas em Bagdá e outros locais do país se vêem sob
ataque, periodicamente.
Não muito longe de nossas instalações, há uma delegacia de polícia e a sede de uma empresa
americana de segurança, no prédio vizinho. É irônico perceber
que o Exército dos EUA precisa
cuidar da segurança de ambos os
locais, tanto a delegacia de polícia
quanto a sede da empresa de segurança, com um blindado e seis
soldados em patrulha diária.
E, mesmo com todas essas medidas de segurança, continua a ser
muito perigoso estar aqui. Tiros
de morteiro explodem em nosso
bairro praticamente todos os dias.
Fogo de metralhadora é tão comum quanto o chamado para as
preces islâmicas. Algumas explosões são tão próximas, ocasionalmente, que as janelas do meu
quarto tremem e as cortinas se
mexem, com a concussão.
Duas semanas atrás, tivemos
também um incidente de "Ali Babá" (roubo) por aqui. Um grupo
de assaltantes tentou invadir a sucursal, mas foram repelidos pelos
nossos guardas armados. Houve
um tiroteio. Por sorte, nossos
guardas foram mais fortes, e os ladrões fugiram. Durante o tiroteio,
vimos balas ricocheteando nos
prédios de nossa rua, a mesma pela qual caminhamos todos os dias.
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