São Paulo, domingo, 01 de dezembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Aids: presente, passado e futuro

VICENTE AMATO NETO E JACYR PASTERNAK

A infecção pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV), na verdade pelos HIV-1 e 2, mas essencialmente pelo HIV-1, tem sido uma das epidemias de maior impacto na história recente da humanidade, se considerados a quantidade de desgraças que causa e os óbitos que induz.
Em números absolutos, já ultrapassou muito a gripe espanhola de 1918, que matou algo como 20 milhões de pessoas, mas em prazo muito mais curto. Só na África há ao menos 20 milhões de portadores do HIV e, no mundo todo, cerca de 40 milhões. Dez por cento da população africana ao sul do Saara está contaminada. Só em 2001, morreram 2 milhões de indivíduos por conta do HIV na África, e calcula-se que a Aids tenha originado aí, até hoje, a morte ao menos 20 milhões de pessoas.
A Aids não se limita à esfera puramente biológica. Fatores sociais, políticos e econômicos são extremamente relevantes, dependendo muito o destino de um contaminado do país onde vive.
No Primeiro Mundo -e em relação à infecção pelo HIV o Brasil indiscutivelmente encontra-se em tal nível-, o paciente tem acesso a exames, assistência médica e medicamentos anti-retrovirais, sendo que a sua sobrevida pode ser medida em décadas, se não houver falta de aderência ao tratamento ou resistência viral desde o começo da infecção.
No Terceiro Mundo, a doença não é tratada, evoluindo para afecções oportunísticas e tumores, fazendo com que, após o início da moléstia, 95% dos pacientes morram em três anos, se tanto.
Esse é o presente, e o futuro, provavelmente, será pior. Em ensaio recente na revista "Foreign Affairs", Nicholas Eberstadt analisa o possível impacto dessa peste no mais povoado dos continentes, a Ásia, onde há hoje milhões de portadores do HIV, como na África há uma década. As condições sociais e econômicas são diversas e diferem de país para país, mas, na África, em dez anos, o número de infectados triplicou. Vai ser diferente na Rússia, na China e na Índia?
Na Rússia, que tem população declinante, um serviço de saúde mais sucateado que o nosso Sistema Único de Saúde e onde vigoram prisões em que tuberculose multirresistente e Aids convivem, a repercussão do contratempo devido ao HIV pode ser devastadora. O fato de ter uma população que envelhece rapidamente, com alta mortalidade por enfermidades cardiovasculares e aumento da porção de viciados que injetam drogas nas veias, e ser um lugar no qual o setor mais organizado é a máfia, inexistindo dinheiro para tratamento da maioria dos casos e falta de vontade política para fornecê-lo, permitem prever que, entre 2000 e 2025, ocorrerão no país cerca de 13 milhões de infecções pelo HIV, e 3 milhões de mortes.


Se nada de valioso for concretizado, extrapolações epidemiológicas são conservadoras perto dos desastres que vão aparecer


Na Índia, a população sob risco é maior, as tensões sociais, muito mais complicadas, e as barreiras culturais, muito piores. O relacionamento sexual com prostitutas é socialmente aceito. Camisinha, além de não ser culturalmente apreciada, está além da capacidade de pagamento. O acesso à medicação é difícil, e não há sistema de saúde adequadamente preparado para lidar com a Aids. Extrapola-se que aí 110 milhões de infecções pelo HIV surgirão entre 2000 e 2025, com 56 milhões de mortes -mais do que todos os óbitos já ocorridos até hoje em virtude dessa doença.
Na China, a grande fonte da virose foi a extração de sangue e derivados pelo Exército de forma porca e imprópria, propiciando em Henan epidemia de infecção pelo HIV só reconhecida oficialmente cinco anos depois de denunciada por médicos que se arriscaram a ir para a cadeia, porquanto é complicado brigar com a burocracia local. Outrossim, a China tem numerosos drogados e nela vivem homossexuais, sem reconhecimento da existência deles; toda a assistência médica é paga, parecendo o nosso SUS socialista demais. Isso significa falta total de acesso à assistência e a medicamentos. Eberstadt calcula que entre 2000 e 2025 haverá 70 milhões de infectados pelo HIV e 40 milhões de mortes.
A Aids é cruel com a economia: mata cidadãos em idade produtiva e reprodutiva. Como ficarão as economias desses países com essa perda? Como viverão aposentados e crianças? Previsões como as acima não passam agora de conjeturas. Podem, contudo, confirmar-se como aterradora realidade se muitas correções não forem feitas e não houver perspectivas de mudanças econômico-políticas aptas a impedir o que Gabriel García Márquez chamaria de crônicas de mortes anunciadas.
Só uma vacina deteria a avassaladora marcha do HIV e da Aids, e estamos muito longe disso. Nem sabemos se é possível conseguir vacina eficiente. Um imunizante motivador de proteção parcial poderá ser pior, do ponto de vista epidemiológico, do que nenhum, e modelos matemáticos demonstram isso.
Não acreditamos em inevitabilidade de destino, nem em leis que tornem a história científica e permitam antevisões precisas do futuro. Acreditamos que, se nada de valioso for concretizado, extrapolações epidemiológicas são conservadoras perto dos desastres que vão aparecer. Mais uma vez, o exemplo da África concede-nos razão: nem nos delírios mais pessimistas imaginamos o que está acontecendo por lá. O que era previsível dizia respeito à postura do resto do mundo, que simplesmente não está nem aí, visto que o interesse econômico da África é mínimo. Vamos ver essa desgraça acontecer de novo na Ásia?


Vicente Amato Neto, 75, médico infectologista, é professor emérito da Faculdade de Medicina da USP. Jacyr Pasternak, 62, médico infectologista, é doutor em medicina pela Unicamp


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