São Paulo, domingo, 01 de dezembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A atuação de Lair contra a Aids

ADIB D. JATENE

O programa de combate e controle da Aids do Ministério da Saúde recebeu reconhecimento internacional como o mais avançado de todo o mundo.
Esse programa é o resultado de uma formulação que atravessou várias administrações e foi se consolidando ao longo do tempo em um exemplo de continuidade administrativa, presente, aliás, em outros programas do ministério.
Meu propósito, neste artigo, é resgatar o papel de uma funcionária exemplar do ministério, afastada desde 1996, quando sofreu acidente automobilístico em Recife. Realizava-se um evento sobre Aids naquela cidade, onde a atuação destacada de Lair Guerra de Macedo Rodrigues foi interrompida, ficando ela por vários dias entre a vida e a morte, conseqüência de lesão cerebral. Recuperou-se lentamente, não podendo, até hoje, reassumir suas funções.
Esse episódio de forma nenhuma apaga sua participação no combate a essa grave doença que atinge todo o mundo.
Quando, em 1992, ocupei por oito meses o ministério, encontrei Lair, que já tinha dirigido a Divisão de Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids, com proposta para trabalhar na Opas (Organização Pan-Americana da Saúde), em Washington, como consequência de sua atuação no ministério.
Insisti para que reassumisse a divisão e, com participação de Pedro Chequer e outros funcionários, executasse a proposta de intensificação de ações e descentralização nos Estados e nos municípios, com incorporação de diversas ONGs que se ocupavam do mesmo tema. A eficiência com que ela comandou o processo trouxe as primeiras perspectivas otimistas sobre o controle da doença, com alertas agressivos nos meios de comunicação, que tiveram tanto impacto na população.
Recursos internacionais obtidos por ela permitiram ampliar significativamente as ações de informação e de prevenção com participação destacada de organismos da sociedade, escolas e comissões internas de prevenção de acidentes (Cipa) de empresas. Enquanto isso, com recursos do orçamento, iniciava a distribuição de AZT gratuitamente aos portadores da doença. Merece destaque a distribuição de seringas e agulhas descartáveis a usuários de drogas injetáveis, feita de forma pioneira por David Capistrano em Santos. Essa atitude teve o apoio de Lair, enfrentando a onda de críticas de setores que não absorviam a gravidade do problema e a necessidade de atitudes inovadoras e corajosas, hoje universalmente aceitas.


A eficiência com que ela comandou o processo trouxe as primeiras perspectivas otimistas sobre o controle da doença


Em março de 1995, Lair interferiu para que fosse editada a portaria ministerial nº 21, regulamentando a compra e a distribuição de medicamentos para o tratamento da HIV/Aids.
Em 1996, Lair procurou-me para comunicar a convocação da primeira Reunião de Consenso, com a participação de 60 especialistas em infectologia e DSTs. Esse evento, de dois dias, em Brasília, resultou em proposta de se disponibilizar a todos os portadores da Aids o coquetel de medicamentos capaz de controlar os sintomas e permitir sobrevida longa, mantendo suas atividades profissionais. Essa proposta, que honra a comunidade científica brasileira, emitida pela primeira vez em todo o mundo, foi levada por Lair à 7ª Conferência Internacional sobre Aids, realizada em Vancouver (Canadá). Sensibilizado com o problema, José Sarney, então presidente do Senado, apresentou e conseguiu aprovar, contra a opinião de alguns setores do governo, a lei 9313/ 96, regulamentada pela portaria ministerial 2334/96. Dessa forma, o ministério ficou legalmente autorizado a disponibilizar gratuitamente os medicamentos específicos aos portadores de Aids.
Assim, o Brasil se tornou o primeiro país a abordar a doença não apenas nos aspectos educativo e preventivo, mas também oferecendo o tratamento mais eficaz de forma universal e gratuita.
Após o acidente, afastada Lair, o programa, graças a Pedro Chequer e aos que se seguiram, manteve a mesma diretiva com total apoio dos ministros que se sucederam.
A atitude de José Serra, enfrentando os laboratórios internacionais e ameaçando com a quebra de patentes para adequar o custo dos medicamentos, faz parte da luta para manter a orientação que vem sendo construída no SUS.
A manifestação do Unaids (Programa Conjunto das Nações Unidas para HIV/Aids) considerando o programa brasileiro o mais avançado do mundo consagra não só o Ministério da Saúde, mas também a determinação com que o problema foi abordado. Ressalte-se que o Brasil, de forma pioneira, e o Canadá são os únicos países que oferecem gratuitamente os medicamentos a todos os portadores da doença.
Neste Dia Mundial de Luta Contra a Aids, o nome de Lair deve ser exaltado porque foi sua capacidade de propor, sua coragem de defender e sua eficiência em executar que nos colocaram na direção correta, consolidada por tantos que, com competência e dedicação, mantiveram as ações em crescendo, garantindo, em área tão sensível, o reconhecimento de uma liderança que partiu de Lair.
Hoje, ainda com alguma sequela do acidente, recebe, por meu intermédio, o reconhecimento de todos os que acompanharam, aplaudiram e não se esquecem de sua atuação.


Adib D. Jatene, 73, cardiologista, é professor aposentado da Faculdade de Medicina da USP e diretor-geral do Hospital do Coração. Foi ministro da Saúde (governos Collor e FHC) e secretário da Saúde do Estado de SP (governo Maluf)


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