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TRIBUNAL RACIAL
No rastro de outras universidades federais, a Universidade
de Brasília (UnB) instituiu um sistema de cotas para estudantes negros.
Mas, a pretexto de evitar "fraudes", a
UnB inovou: os candidatos que optam pelo sistema de cotas são fotografados e uma comissão, encarregada de escrutinar as imagens, homologa ou não as inscrições. A comissão da UnB merece a qualificação
de primeiro tribunal de pureza racial
instalado no Brasil.
O sistema censitário brasileiro opera por meio da autodeclaração para
distribuir a população em grupos segundo a cor da pele. O recurso à autodeclaração decorre do reconhecimento de que a espécie humana não
se divide em raças. A identidade "racial" reflete o racismo: é subjetiva e
mutante. No Haiti, um ditado em
"créole" assevera que "nèg rich sé
mulat, mulat póv sé nèg" (negro rico
é mulato, mulato pobre é negro).
A autodeclaração funciona nos recenseamentos, que não colocam em
jogo interesses individuais, mas não
serve para finalidades de concessão
de privilégios em concursos públicos. A "solução" da UnB cria um precedente para a institucionalização de
identidades raciais no Brasil.
O tribunal racial criado em Brasília
não será capaz de identificar de modo objetivo a "raça negra". Um estudante branco, que tem bisavô negro,
inscreveu-se no sistema de cotas da
UnB e prometeu contestar judicialmente a eventual não-homologação
da sua inscrição. A proliferação do
sistema de cotas, nas universidades e
órgãos públicos, provocará inexoravelmente a multiplicação de contestações judiciais. Além disso, por razões evidentes, indivíduos "certificados" como negros em determinado
concurso serão catalogados como
brancos em outros concursos, gerando debates insolúveis sobre a determinação da identidade racial.
Uma hipótese aterradora é a de
submeter todos os brasileiros a uma
classificação racial padronizada, inscrevendo a nova informação na carteira de identidade. Além de fotos, os
critérios de classificação acabariam
incluindo, possivelmente, a medição
do tamanho do nariz, como se fazia
no século 19, e o exame da proporção
de "contribuições raciais" dos ancestrais, como fez a Alemanha nazista.
A alternativa é cumprir a Constituição, que proíbe explicitamente o estabelecimento de distinções de natureza racial entre os cidadãos.
O contrato republicano sustenta-se
sobre o princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos. O sistema
de cotas "raciais" preconizado pelo
governo federal é um atentado direto
a esse contrato, e o tribunal racial da
UnB é a expressão mais acabada do
desprezo por seu princípio básico.
O princípio da igualdade, porém,
não impede o uso de ações afirmativas. A USP, por exemplo, anunciou a
criação de um curso pré-vestibular
gratuito destinado a estudantes carentes de todas as cores. O MEC e a
Secretaria da Promoção da Igualdade
Racial não mostraram entusiasmo
pela iniciativa, preferindo insistir na
política de cotas. É que o caso do cursinho da USP evidencia as deficiências do ensino e as assimetrias econômicas, levando a um debate que
talvez o governo prefira evitar.
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