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CARLOS HEITOR CONY
Inimigo provisório
RIO DE JANEIRO - Mal saído de uma gripe que colocou em risco minha
condição de imortal da ABL, peguei
um entupimento na trompa de Eustáquio que me causou vexames. Eu
pensava que essa tal trompa desse tal
Eustáquio fosse alguma coisa ligada
ao aparelho genital feminino, daí minha surpresa quando o otorrino me
garantiu que eu tinha uma, aliás
duas, uma em cada ouvido.
Fiquei interinamente surdo e senti
a solidão de um surdo. Pior do que o
cego, que não é discriminado socialmente, pelo contrário, é amparado e
afagado, o surdo é evitado. Acenam
para ele, ligeiramente, e logo saem de
perto, pois fica difícil conversar com
ele, a menos que use aquele aparelhinho redentor.
Não era meu caso. Purguei parte de
meus pecados durante uns três dias e
lembrei-me da época em que, membro do Conselho Estadual de Cultura,
sentava entre dois colegas meio surdos. O Abdias, à direita, era surdo do
ouvido esquerdo. E o Ivolino, à esquerda, surdo do ouvido direito.
A soma dos dois resultava num surdo inteiro, e, com eles, eu tive problemas de relacionamento, pois ambos
gostavam de conversar e de fazer revelações que consideravam importantíssimas.
Exigiam minha opinião, e eu não
podia dá-la em voz alta nas sessões.
Limitava-me a aprovar ou a desaprovar com a cabeça ou com as mãos
e, como não me interessava abrir polêmica com eles, com eles estava sempre de acordo, ou parecia isso.
Até que, numa votação sobre o
tombamento de um prédio em Maricá, os dois tinham opinião divergente
e ambos contavam com o apoio que
eu prometera por meio de sinais.
Quando percebi o desafio de contrariar um ou outro, decidi contrariar os dois ao mesmo tempo abstendo-me de votar. Recebi a cara feia deles, mas fiquei na minha.
Até que chegou o meu dia. Não ouvi o cumprimento amável de um colega, não retribuí e ganhei um inimigo que espero provisório.
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