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GENOCÍDIO EM MARCHA
"Eu quero salvar cada
uma das crianças. Mas nem
nós nem a comunidade internacional temos os recursos ou o mandato
para isso. Então, temos que fazer distinções. Temos que formular duras
questões sobre onde e quando podemos intervir." Antes dessas palavras,
proferidas há uma década por Anthony Lake, o conselheiro de Segurança Nacional de Bill Clinton, dezenas de milhares de civis já tinham sido assassinados em Ruanda, na África, ao longo de um mês de massacres. Nos 70 dias seguintes, governos e Nações Unidas continuaram
inertes, ou melhor, imersos num debate arcano sobre o significado preciso do termo "genocídio". Nesse intervalo, a matança ininterrupta ceifou as vidas de 800 mil pessoas.
Como num pesadelo, o roteiro de
Ruanda começa a se repetir no Sudão. Na região ocidental de Darfur, a
milícia janjaweed, comandada por líderes de tribos que se identificam como árabes, aterroriza as tribos que se
descrevem como negro-africanas. O
número de refugiados já ultrapassa 1
milhão, os mortos já somam mais de
30 mil e 2 milhões necessitam urgentemente de remédios e alimentos. Isso é "genocídio"?
O governo sudanês, indignado,
afirma que não. Há múltiplos indícios de que a milícia janjaweed seja financiada e armada pelo governo. O
conflito participa marginalmente do
contexto maior da interminável
guerra civil sudanesa que opõe o regime islâmico de Cartum aos rebeldes não-islâmicos do sul. Diante da
perspectiva de um acordo de paz,
que asseguraria autodeterminação
para o sul, líderes negro-africanos de
Darfur iniciaram uma revolta para
conquistar autonomia regional.
Na ONU, como aconteceu há dez
anos, as potências negam-se a pronunciar claramente a palavra "genocídio". Uma convenção da Nações
Unidas sobre o tema, de 1948, confere o direito à intervenção para "prevenir e punir" o genocídio. Mas, sem
essa caracterização, uma intervenção
internacional só tem legalidade nos
casos de autodefesa ou, sob autorização do Conselho de Segurança, para
evitar ou enfrentar uma agressão militar. Em outras palavras, fora do
contexto do genocídio, os Estados
têm mãos livres para massacrar suas
próprias populações ao abrigo do
princípio da soberania nacional.
Até o momento, as potências mundiais negam-se a falar em genocídio.
Os Estados Unidos, atolados no Iraque e no Afeganistão, parecem pouco propensos a liderar uma intervenção num país majoritariamente muçulmano da África. Os europeus, como de costume, aguardam um sinal
de Washington. A Rússia e a China
jamais usam a palavra "genocídio",
pois não querem vê-la de modo algum empregada, algum dia, para a
Tchetchênia ou o Tibete.
Enquanto isso, como há dez anos,
acumulam-se os sinais de que um
genocídio está em marcha.
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