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FALLUJAH E NAJAF
Um editorial do "The New
York Times" já qualifica a invasão do Iraque como "um sonho
ruim". As forças americanas, pela
primeira vez, se viram forçadas a negociar com os insurgentes, relaxaram o cerco a Fallujah e, de modo bizarro, instalaram um ex-general de
Saddam Hussein no comando dessa
cidade. O general e os insurgentes
comemoraram hasteando a bandeira
iraquiana dos tempos do ditador.
O duplo impasse que se desenrola
na sunita Fallujah e na xiita Najaf sinaliza uma nova etapa no conflito. O
filósofo Ernest Renan, um dos pais
do nacionalismo francês, definiu nação como "um plebiscito cotidiano".
Ele queria dizer que a identidade nacional dos indivíduos não deriva da
sua etnia, língua ou cultura, mas da
vontade. Em Fallujah e Najaf, os árabes sunitas e xiitas que combatem as
forças de ocupação estão tomando
parte num "plebiscito nacional" -e
estão dizendo que são iraquianos.
O Iraque foi inventado pela astúcia
britânica, ao fim da 1ª Guerra, por
meio de fronteiras arbitrárias traçadas sobre o mapa do decomposto
Império Otomano. Londres queria o
petróleo e o controle sobre o que a
imaginação imperialista chamava "a
retaguarda da Índia". Montaram um
quebra-cabeças formado por três peças incongruentes, cujos pólos eram
o porto de Basra, no sul xiita da Mesopotâmia, Bagdá, na Mesopotâmia
central sunita, e Mossul, no Curdistão. O novo país foi declarado mandato britânico pela Liga das Nações.
A construção improvável de 1920
desmoronou algumas vezes, mas foi
recomposta pela ditadura do Partido
Baath. O Estado iraquiano, uma estranha mistura de modernidade pan-arabista e tradição tribal, estruturou-se em torno do partido único nacionalista e totalitário, cujo núcleo de
poder era o clã sunita de Tikrit, a cidade natal de Saddam. A repressão,
às vezes extremamente sangrenta,
contra a maioria xiita e a minoria curda funcionou como instrumento essencial de manutenção da unidade.
Os EUA ocuparam o Iraque usando
o pretexto das armas de destruição
em massa e desfraldando a bandeira
da construção de um Estado-nação
democrático. Mas, assim como o
pretexto, a bandeira desfez-se em
frangalhos. Hoje, a imagem que sintetiza a ocupação é a do centro de tortura instalado em Abu Ghraib, a antiga prisão do regime de Saddam Hussein, em Bagdá. Entretanto, desafiando algumas profecias pessimistas, os componentes sunita e xiita do
Iraque não parecem caminhar no rumo da guerra civil: pelo menos por
hora, eles descobriram um inimigo
comum nas forças de ocupação.
Na sua linguagem habitual, George W. Bush atribui as revoltas de Fallujah e Najaf a "terroristas estrangeiros" e "fanáticos radicais". Certamente uns e outros existem na terra
sem lei em que se transformou o Iraque, mas é cada vez mais evidente
que se está configurando uma resistência nacional à ocupação.
Diversas nações na África e na Ásia
forjaram um sentimento de identidade e unidade combatendo o domínio
estrangeiro. O Iraque começa a trilhar esse caminho. Por uma ironia da
história, do modo mais doloroso e
inesperado para Washington, a ocupação americana poderá de fato gerar um Estado-nação no Iraque.
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