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CARLOS HEITOR CONY
A culpa feliz
RIO DE JANEIRO - Nos meus tempos de seminário, sempre que chegava a
Páscoa, eu ficava impressionado com
um hino composto por São Tomás de
Aquino que era cantado, se não me
engano, no Sábado de Aleluia. O chamado "Doutor Angélico" pode ser
discutido como filósofo ou teólogo,
mas como poeta, embora usando o
latim corrompido da Idade Média,
pode ser considerado como um dos
mais perfeitos e um dos primeiros a
usar a rima com a mesma precisão de
Dante e Petrarca.
Nesse hino, o poeta teve a audácia
de classificar como culpa feliz o pecado original do qual, segundo a doutrina cristã, nasceu toda a condição
humana mortal e pecadora. "O felix
culpa": "Oh culpa feliz que nos fez
merecer tal e tanto redentor". Se o
homem não tivesse provado os frutos
do bem e do mal, não teria havido a
redenção, estaríamos ainda no paraíso terrestre, sem morte e sem dor.
Na esteira de Tomás de Aquino,
mas de forma oblíqua e até mesmo
dissimulada, o mesmo raciocínio poderia ser estendido à Paixão e morte
de Cristo, que o filme de Mel Gibson
colocou agora em azeda discussão
histórica, religiosa e sentimental.
Para consumar a redenção da humanidade diante de seu criador, era
preciso que um cordeiro fosse imolado, seu sangue fosse derramado em
abundância, tal como mostra o filme
de Gibson. Discutir se a culpa do sacrifício de Cristo pertence aos judeus
ou aos romanos é ocioso. Todos os
atos e fatos ligados ao suplício da
cruz e do Calvário faziam parte da
redenção humana, daí a classificação poética de "feliz" a para culpa do
homem que, pecando originalmente,
tornou-se merecedor de tal e tanto
redentor.
Não foram os judeus nem os romanos que supliciaram o Filho de Deus
-segundo a doutrina cristã. Foi o
homem coletivo, o homem comum
que ao longo da história sempre dá
um jeito de expressar a condição humana, que é imperfeita, violenta e
recorrente. Daí a culpa -qualquer
culpa- pode ser feliz.
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