São Paulo, domingo, 15 de dezembro de 2002

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A QUESTÃO DO JÚRI

O júri é soberano e não há como contestar a legalidade de sua decisão de absolver os três policiais militares acusados pela morte, em junho de 2000, de Sandro do Nascimento, o sequestrador do ônibus 174, no Rio de Janeiro, caso que foi transmitido ao vivo por várias TVs e gerou comoção nacional, sobretudo depois que uma refém grávida foi morta. Mesmo reconhecendo a legitimidade do júri, não há como deixar de observar que houve gritantes falhas técnicas no julgamento.
Sandro entrou desarmado, imobilizado e com vida no camburão que deveria levá-lo a uma delegacia, mas chegou morto e com marcas no pescoço ao hospital. A necropsia do Instituto Médico Legal atesta que a "causa mortis" foi asfixia mecânica por estrangulamento. Até se poderia discutir se os policiais agiram ou não com dolo, se tiveram ou não a intenção de matar, mas nem a defesa sustentava que não houve homicídio.
Esse não foi o primeiro nem será o último veredicto polêmico pronunciado por um júri. Casos como esse são úteis para suscitar uma discussão sobre a conveniência ou não da instituição do tribunal do júri. Para seus defensores, o júri está entre as mais democráticas das instituições. O réu, em vez de ser julgado por magistrados de carreira, é submetido ao escrutínio de seus pares, cidadãos comuns como ele, que terão autonomia para decidir sobre seu destino.
Para os adversários, o júri é um anacronismo no qual se substitui a aplicação técnica das leis pelo simples teatro. A razão, que deveria presidir a esse tipo de julgamento, é substituída pela emoção.
Vale lembrar que o tribunal do júri surgiu na Inglaterra medieval como meio de proteger a nobreza do poder de monarcas e dos juízes por eles nomeados. Eram tempos em que imperavam formas não-racionais de determinar a culpa de um réu, como os ordálios, isto é, as provas obtidas por tortura. Elas eram vistas como julgamentos divinos: quem sobrevivesse às provações era considerado inocente. Esses "métodos de investigação" há muito deixaram de ter valor legal, embora lamentavelmente ainda sobrevivam em certas delegacias brasileiras. De todo modo, pode-se afirmar que as razões que justificaram o sistema de júri em sua origem já não se fazem presentes. Isso não significa, é claro, que a instituição não possa ser mantida.
Ao longo do século 20, o júri perdeu espaço, principalmente em países que não pertencem ao mundo anglo-saxão. Mesmo o Reino Unido, a pátria do júri, vem diminuindo o universo de casos que a ele são submetidos. No Brasil, o júri subsiste no julgamento de crimes dolosos contra a vida praticados ou tentados. São justamente esses os casos que dependem cada vez mais de informações técnicas, como laudos necroscópicos, balística, exames de DNA.
Como está inscrito na Constituição, é pouco provável que o instituto do júri venha a ser simplesmente abolido. É o caso, porém, de discutir modificações que tendam a modernizá-lo. A Justiça, como qualquer atividade humana, tem muito de teatro, mas cumpre zelar para que este se mantenha em níveis razoáveis.


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