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O programa brasileiro de combate à Aids dá a devida atenção aos homossexuais?
NÃO
Omissão e preconceito
MÁRIO SCHEFFER
A PARADA que reuniu mais de 3
milhões de pessoas na capital
paulista e a conferência convocada pelo presidente da República
deram visibilidade à promoção da cidadania e dos direitos humanos dos
homossexuais.
Já na próxima semana, tem início o
Congresso Brasileiro de Prevenção
das DSTs e da Aids, momento oportuno para exigir reparações e para voltar a tocar em um tabu supostamente
perpetuado como medida protetora.
É preciso afirmar que ainda hoje a
epidemia da Aids atinge os homossexuais no Brasil.
Soma-se a isso a polêmica em torno
da recente notícia de que arrefeceu
em muitos países a ameaça da Aids
entre os heterossexuais. Não é o caso
do Brasil, mas, por aqui, é preciso tirar do armário a realidade enrustida.
Na história recente da Aids no país,
as políticas governamentais e as parcerias entre os programas de combate
à doença, ONGs e movimento homossexual têm ocupado um espaço ambíguo: contribuíram para avanços significativos contra a discriminação e a
homofobia, mas não conseguiram impor como terreno permanente de intervenção de saúde pública a vulnerabilidade acrescida dos homossexuais
à epidemia.
Diretamente afetados, já no final
dos anos 1980 os homossexuais protagonizaram boas respostas.
Um primeiro movimento conjugou
a mobilização comunitária e a adoção
de práticas de sexo seguro, uma adaptação exemplar. Mas não são poucas
as evidências internacionais de um
reengajamento dos gays na sexualidade mais próxima aos períodos pré-epidemia. Verifica-se um crescente
relaxamento dos comportamentos
protegidos, ainda que agora seja amplo o conhecimento dessa população
sobre o HIV e a Aids.
Os critérios de vigilância da Aids no
Brasil a partir de pacientes notificados dão um retrato do passado e não
medem a disseminação atual da epidemia entre os gays. O diagnóstico
também é tardio -43% das pessoas
com HIV chegam ao SUS já doentes
ou imunologicamente debilitadas. E
há, ainda, importante subnotificação
dos casos de exposição homossexual.
Mesmo assim, sabe-se que, de 1996
em diante, só faz crescer a Aids entre
jovens homossexuais brasileiros. A
taxa de incidência da Aids entre os
gays é 11 vezes maior do que a da população heterossexual.
Foram corretas as respostas à "heterossexualização" da Aids no Brasil,
sobretudo as estratégias para tentar
conter seu grande avanço na população feminina. Mas, ao agirem sobre
dados epidemiológicos absolutos,
técnicos da saúde perderam o foco em
grupos mais vulneráveis.
É hora de sair do papel o tardio plano do Ministério da Saúde de enfrentamento da Aids entre os homossexuais. Atrasada, a prevenção para esse
público está ainda agarrada ao binômio folheto e camisinha, de 20 anos
atrás. As poucas ações que sobreviveram pecam pela homogeneização,
não levam em conta que as relações
sexuais entre homens acontecem
com grande variação de circunstâncias, experiências pessoais e suscetibilidades à infecção pelo HIV. Os homossexuais estão na maioria das comunidades, são de todas as idades, raças, estratos sociais e regiões do país.
Existem novas formas de afirmação
de identidades, novos comportamentos e estilos de vida gay que influenciam a gestão coletiva do risco.
E há que rever a terceirização da
prevenção, delegada anos a fio às
ONGs. Prefeituras e Estados têm que
assumir sua obrigação legal, até porque os grupos de luta contra a Aids,
desmobilizados e em crise, cada vez
menos podem assumir essa tarefa.
Além disso, o SUS não deve, em detrimento de programas de saúde, se ocupar tanto de projetos institucionais e
de visibilidade homossexual, que, embora imprescindíveis, podem ser assumidos por outras pastas, como Justiça, Direitos Humanos, Cultura.
Num país onde os homossexuais
são proibidos de doar sangue e o fundamentalismo religioso de parlamentares impede a união civil e a criminalização da homofobia, ainda persiste a
identificação dos gays como vilões.
O desafio maior é assumir um problema de saúde pública sem permitir
o retorno do estigma da associação
entre Aids e homossexualidade, sem
vitimar e sem impingir ao homossexual o patrulhamento. Os gays já pagam um preço alto demais pela autonomia negada, pela omissão e pelo
preconceito.
MÁRIO SCHEFFER, 41, comunicador social e sanitarista,
doutor pela Faculdade de Medicina da USP, é membro do
Grupo Pela Vidda-SP (Valorização, Integração e Dignidade do Doente de Aids) e diretor do Cebes (Centro Brasileiro de Estudos da Saúde).
mscheffer@uol.com.br
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